Três filmes do 26º Festival do Rio: “Bird”, “Bruxas”, “O Cão Preto”

textos de Leandro Luz

“Bird”, de Andrea Arnold (2024)
Andrea Arnold aponta a sua câmera nervosa para um bairro no sudeste da Inglaterra, numa região periférica próxima a Londres. Acompanhamos a vida de Bailey (Nykiya Adams), uma jovem de 12 anos que vive com o irmão e o pai no melhor estilo “solta no mundo”, uma vez que o seu círculo familiar não tem muito tempo, em meio aos corres da vida, para ampará-la – tal como acontece com milhares de crianças e adolescentes que vivem em circunstâncias semelhantes mundão afora. Bug (Barry Keoghan, em seu melhor papel no cinema) é o típico garotão que precisou amadurecer cedo demais e que opera no vai-e-vem entre as obrigações do cotidiano e os preparativos do seu casamento, evento nada tranquilo para Bailey que rechaça a madrasta e se afasta cada vez mais das tentativas de cuidado do pai. As relações entre as personagens são tratadas com muita sutileza, sem grandes invencionices, algo entre o cinema de John Cassavetes e o estilo dos irmãos Dardenne. Em entrevista para Caitlin Quinlan, no contexto da estreia de “Bird” em competição no Festival de Cannes, Andrea Arnold disse que se sente tão vulnerável agora como sentia quando fez os seus primeiros curtas-metragens. Esse fator extra-filme é relevante pois demonstra o quanto Arnold é uma diretora disposta a se arriscar em seus trabalhos, conduzindo temas sempre muito espinhosos e construindo personagens frequentemente instáveis, pulsantes, dispostas a pular no abismo de suas próprias contradições. Ao se sentir excluída em virtude do novo relacionamento do pai, a protagonista busca atenção e acolhimento em outro lugar, que se apresenta primeiro como estranhamento e em seguida como porto seguro, materializado no personagem que dá título ao filme, interpretado por Franz Rogowski. É curioso como o filme faz questão de tornar intangível esse personagem / elemento, fazendo de “Bird” um filme que acena para a fantasia apesar da sua vocação realista. O bom uso da música pop na trilha sonora (Fontaines D.C., Blur, The Verve) arremata a experiência, neste que é um dos filmes mais interessantes da temporada.


“Bruxas / Witches”, de Elizabeth Sanke (2024)
Elizabeth Sankey dirige o seu documentário como quem declara princípios. E que baita declaração! Começa com um levantamento iconográfico dos filmes de bruxas, explorando como a história do cinema lidou com a ideia do feminino em circunstâncias “mágicas” ou simplesmente em estado de resistência / confronto para, em seguida, embarcar no tema da maternidade e das pressões psicológicas que as mulheres enfrentam no pós-parto. A diretora conduz entrevistas, narração e material de arquivo sem que nada pareça fora do lugar. Se coloca – e se expõe – como personagem, mas guarda a devida distância quando precisa entrar na intimidade dos relatos de outras pessoas. Esse jogo de aproximação e afastamento é um trunfo da cineasta, que é capaz de equilibrar bem a exposição de histórias muito pesadas vividas pelas mulheres entrevistadas e a reflexão em torno da ineficiência das políticas públicas voltadas para a saúde (e olha que estamos falando da Inglaterra). A tese do filme é a de que mulheres com depressão, transtorno de ansiedade e psicose em função da experiência pós-parto foram historicamente ignoradas, relegadas ao constrangimento e à solidão. Tal fato, ilustrado por um punhado de depoimentos assombrosos, é um disparador para que o filme atravesse o tecido da realidade e brinque com o imaginário da bruxaria – seus elementos mais conhecidos são retrabalhados e reinterpretados, e servem para ressignificar a ideia própria do que se entende como “bruxa” e para promover uma lógica de cuidado no contexto da noção de sororidade. Os cenários cuidadosamente montados para acolher as entrevistas (algo de que o filme se orgulha bastante, vide o making of incluído nos créditos finais) são fundamentais para que cada testemunho seja dado com o auxílio da atmosfera correta. De “A Bruxa” (Robert Eggers, 2016) a “O Mágico de Oz” (Victor Fleming, 1939), de “Jovens Bruxas” (Andrew Fleming, 1996) a “Suspiria” (Dario Argento, 1977), mas também passando por representações menos óbvias como “O Martírio de Joana D’Arc” (Carl Theodor Dreyer, 1928) e “Os Inocentes” (Jack Clayton, 1961), Elizabeth Sankey nos enfeitiça, reúne dispositivos cativantes – que funcionam tanto para quem está no filme como personagem quanto para nós espectadores – e manipula a linguagem documental com extrema confiança.


“O Cão Preto / Gouzhen”, de Guan Hu (2024)
Premiado como Melhor Filme do Un Certain Regard no Festival de Cannes, “O Cão Preto” (2024), dirigido pelo chinês Guan Hu, talvez tenha sido, de todos os filmes que assisti durante o Festival do Rio, o mais estimulante visualmente e a novidade que mais mobilizou conversas pelos corredores cariocas (ainda que outras obras de maior interesse midiático tenham mobilizado mais as redes). Há um aceno bem evidente para o universo dos quadrinhos na decupagem do diretor, que constrói a sua narrativa com poucos diálogos e um domínio absoluto do trabalho com os enquadramentos, se aproveitando principalmente dos planos gerais para efetivamente imprimir uma noção espacial orgânica daquele mundo concebido com muito esmero. Um mundo que é filmado a partir de uma perspectiva arriscada, muito pessoal, que não tem medo de apontar para o fantástico e que, em alguma medida, dependendo da maneira e de sob qual aspecto se observa, pode soar falso ou irreal. O título do filme se justifica já na primeira cena: um automóvel cruza em alta velocidade a paisagem desértica até que um grupo gigantesco de cães (falar em matilha, simplesmente, não dá a dimensão do volume de animais que invadem o quadro) assusta o motorista, que perde o controle da direção. É aí que conhecemos Lang (Eddie Peng), que retorna à sua cidade natal após cumprir longa pena na prisão por um crime que desconhecemos. Lang é um homem de poucas palavras e o seu relacionamento com o cão preto do título, que se destaca do conjunto canino, é o grande interesse de Guan Hu. Eles se conhecem, se estranham, estabelecem uma confiança sincera e se ajudam mutuamente a sobreviver em um ambiente hostil a ambos. No meio dessa relação, conhecemos outro personagem bem interessante, Tio Yao, que ajuda o protagonista e carrega a curiosidade de ser interpretado por Jia Zhangke (cineasta chinês cuja trajetória tem sido relevante desde o início dos anos 2000). Os cachorros vadios são mesmo um espetáculo à parte, tanto pela beleza de suas presenças na composição dos planos – frequentemente abertos, cheios de textura, explorando as paisagens que variam entre o urbano e a natureza – quanto pela função que exercem sobre a trama.

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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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