texto de João Paulo Barreto
Há exatos cinco anos, no texto sobre “Coringa” (2019), filme que Todd Philips utilizou para renovar a fé do espectador na versão cinematográfica do personagem da DC depois da Warner Bros. nos traumatizar com a caracterização de Jared Leto para o mesmo (isso após Heath Ledger ascender ao panteão dos deuses da atuação onze anos antes), este escriba destacou os degraus da insanidade percorridos por Arthur Fleck, personagem vivido com gosto por Joaquim Phoenix.
Tratava-se de um símbolo imagético perfeito. A metáfora ideal de um homem que, semelhante a Sísifo e sua constante e diária subida da montanha como uma busca de um sentido para sua vida, escala degrau por degrau, exausto, a íngreme escadaria percorrida em sua rotina como uma ascensão de um abismo. Tal fosso existencial do qual o sofrido protagonista precisava escapar diariamente o levava de volta ao seu minúsculo apartamento, um muquifo onde encontrava o dependente cuidado materno, um único refúgio no qual poderia se sentir minimamente confortável em suas ingênuas fantasias mentais com a TV. Isso, claro, até o próximo mergulho nas trevas no dia seguinte.
Naquela espiral descendente e catártica que anunciava uma tragédia, Fleck, antes de abraçar a loucura assassina do palhaço de sua identidade real, era massacrado pela violência do mundo ao seu redor até um ponto de ruptura. As consequências dessa ruptura é o que vemos em “Coringa: Delírio a Dois” (“Joker: Folie à Deux”, 2024), sua excelente e imediata continuação. Trata-se de um filme que, fugindo de uma proposta simplória de sequência, na qual seria fácil reciclar elementos e personagens (time que está ganhando…), prefere abordar outro conceito de aprofundamento da loucura de seus protagonistas.
Tais elementos citados surgem não como uma reutilização oportunista de um eficiente artifício visual e narrativo, mas como um modo de se confirmar a força e o impacto que os mesmos possuem. E essa confirmação vem com ainda mais precisão a partir dessa fuga de uma zona de conforto de inércia narrativa. Assim, “Delírio a Dois” se encontra-de maneira corajosa em um gênero que surgiu tímido no original, mas que, agora, é abraçado da mesma forma como a loucura é abraçada por seus protagonistas.
No longa, também dirigido por Todd Phillips (o roteiro foi escrito por ele ao lado de Scott Silver, co-autor do primeiro), encontramos Fleck internado no Asilo Arkham e aguardando o julgamento pelos seus atos. Lá, encontra a interna Lee Quinzel (Lady Gaga, mais uma vez comprovando seu multi-talento), e começa a utilizar uma terapia musical como forma de extravasar suas repressões e depressão. E é aqui que Phillips e Silver acham o ponto de virada original em uma obra que, apesar de oriunda de um fantástico material original lançado em 2019, busca uma independência narrativa e uma nova identidade a partir desse gênero musical.
Em uma inteligente decisão de utilizar as fugas mentais de seus dois protagonistas através das músicas que ambos cantam, inicialmente em seus momentos despertos e, depois, evoluindo para os delírios imaginários do título, este novo Coringa consegue captar com esmero toda a ideia de salvação através da loucura que seu protagonista prega. E é justamente em tais situações de transe que o filme entrega seus melhores momentos.
Acompanhados pelo talento musical de Quinzel (quase um alterego de Gaga no que tange ao seu poder vocal) e pela liberdade que a insanidade de Arthur Fleck é capaz de compor em termos de brutalidade física, tais pontos de catarse acabam por permitir ao longa uma liberdade narrativa que, diante do apelo calcado no real que possui o texto de Phillips e Silver, não seria plausível de se acontecer fora do delírio. Portanto, a rima temática de seu título que se choca com um tremendo impacto visual e violento, algo que beira ao cartunesco (e a animação que abre o filme confirma isso) se torna totalmente apropriada.
A Gotham City de Phillips, desenhada a partir de uma Nova York setentista, e que, no original de 2019, já havia se apropriado eficientemente de forma imagética de clássicos como “Perdidos na Noite” (1969), “Operação França” (1971), “Caminhos Perigosos” (1973) e “Taxi Driver” (1976), continua a captar com precisão a reconstrução de época e o apelo urbano que o filme exige. E se no longa anterior, este aspecto sufocante também tinha sua origem na fotografia de Lawrence Sher a tornar a cidade quente como o inferno que habitava a mente de Fleck, aqui, tal aspecto é trabalhado pelo cinzento ambiente interno da prisão onde vive o Coringa em contraste às cores que as fantasias mentais e musicais que os dois personagens centrais trazem.
Assim, é com regozijo que se percebe a coragem de subverter uma proposta cuja fórmula de sucesso já havia se confirmado, optando em trilhar um caminho diverso, que utiliza os musicais como um ponto não somente narrativo e ilustrativo visualmente, mas de desenvolvimento de seus personagens a partir de sua própria loucura. E se neste processo podemos ver sutis homenagens a mestres dos musicais como Jacques Demy (a cena com os guardas-chuvas coloridos captados em contra-plongée bate pesado), bem como o momento em que Arthur se percebe arrependido e consciente de seus atos ou seu último enquadramento a referenciar o Coringa de Heath Ledger em uma homenagem ao mesmo tempo fantástica e dolorosa de se perceber (o leque narrativo que esse momento abre é formidável), uma vez que é perceptível como o mal contido em Fleck pode ser visto como uma passagem de bastão, isso já torna “Delírio a Dois” uma obra que se destaca independente de seu brilhante original.
Um filme que caberá ao tempo lhe fazer justiça.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador.