Entrevista: Caio Resende, co-diretor de “Dois Sertões”, fala sobre o mergulho filosófico na obra de Geraldo Sarno

entrevista de João Paulo Barreto

Em 2020, o cineasta Geraldo Sarno lançou aquele que seria seu último filme, “Sertânia”, uma saga ao mesmo tempo sanguinolenta e filosófica sobre a trajetória de um jovem que escapa do massacre de Canudos e se torna, após ser levado para o sudeste, um militar. Ao retornar ao sertão nordestino, se une a um grupo de cangaceiros. Situado entre os delírios da passagem entre a vida e morte do menino órfão e o, agora homem, moribundo jagunço, “Sertânia” traz nesse rapaz, Antão, a trajetória do viramundo, marcante personagem central da filmografia de Sarno.

Selecionado para a edição 2024 da Mostra CineBH, “Dois Sertões”, filme dos diretores Caio Resende e Fabiana Leite, aborda não somente a construção da obra-prima final de Geraldo Sarno, mas se torna uma análise da trajetória do diretor oriundo de Poções através de seu próprio olhar fílmico e filosófico. No documentário, vemos o realizador falar sobre as influências da filosofia de Bergson e Nietzsche em sua vida e obra e, nessa reflexão, pensamos em como “Sertânia”, com sua exuberância imagética e narrativa, reflete essa sua ligação.

Nas conversas com o cineasta, Caio Resende pôde comprovar essa relação intrínseca e, em entrevista ao Scream & Yell, aprofunda essa análise. “Em ‘Sertânia’ temos uma presença muito marcante das filosofias de Bergson e Nietzsche e, não de forma menor, também do pensamento de Deleuze. (..) Temos uma personagem incapaz de agir diante das situações nas quais se insere. O Gavião não age, ele é um cangaceiro afamado – muito conhecido por sua valentia –, mas ele não consegue agir, ele está ferido e se depara a todo momento com o intolerável. É o que Deleuze chamaria de colapso do sensório-motor. E esse colapso é uma das condições para um cinema de vidência como é o caso do filme de Geraldo Sarno”, explica Resende.

Abaixo, você lê a integra da entrevista.

“Dois Sertões” traz muito da reflexão de Geraldo Sarno acerca de sua própria trajetória. Isso se percebe nas conversas captadas com ele, nos quais são explicados os modos de criação narrativa envolvendo o encontro entre suas versões infantil, adolescente, adulto e idoso. Ao trazer essa estrutura narrativa para o filme, abordando esse aspecto em conversas, isso gerou uma introspecção para ele? Como foi abrir esse leque de reflexões?
Esses trechos do filme datam de um momento em que a própria possibilidade de se realizar esse filme era muito vaga. Então, eu diria que esses trechos gravados de nossas conversas em torno do trabalho passavam muito por um lugar de troca. Esses assuntos foram aparecendo de forma espontânea por parte dos dois. Estávamos trabalhando e nos relacionando. A câmera estava ali, mas não era o foco. Evidentemente, eu disse coisas sobre mim que não foram pertinentes para o filme e que, por isso, ficaram de fora. Éramos dois amigos se conhecendo, perseguindo um filme, abrindo a própria vida um para o outro. Então, sim, havia introspecção, e abrir esse leque de reflexões foi algo da ordem da naturalidade, dada a natureza do nosso encontro. Entretanto, a relação entre o passado e o presente, entre o velho e o menino só se fez perceber na montagem, quando da partida do Geraldo. Foi só aí que partimos na direção de outra concepção fílmica, nos distanciando do roteiro original. Ali, aos poucos, se desvelou essa narrativa, essa busca do próprio Geraldo pelo menino que foi, presente já como elemento na sua série “Sertão de Dentro”. Esta relação entre o velho e o menino será, então, um elemento central da narrativa do nosso documentário. E mesmo o título, que pode indicar diversas leituras, pode também traduzir essa busca.

O filme traz a criação da obra-prima “Sertânia” e a percepção de que, por mais que queiramos romantizar o fazer cinematográfico, a labuta do set pode ser extenuante. Isso se percebe quando ele desabafa em certo momento ao falar sobre o modo como as demandas e decisões recaem sobre ele. Como vocês lidaram com esses momentos de tensão junto à produção?
Em nosso filme, os problemas que surgiram não estavam necessariamente ligados ao set de filmagens. Isso nem sempre acontece, mas como se tratava de um documentário e como era uma equipe reduzida, a relação entre todos se deu com certa tranquilidade. Ainda assim, tivemos muitos problemas e buscamos lidar com eles de forma transparente, colocando as questões que precisávamos colocar, deixando claros os motivos que moviam a alma do filme. Mas, de fato, a cena de tensão em que Geraldo desabafa comigo e discute com a produtora do seu filme (e que veio também a assinar a direção executiva do nosso filme), Gorette Randam, nos pareceu fundamental, quando do processo de montagem, justamente por deixar entrever os conflitos presentes num set de cinema. Esta cena foi também muito defendida pela codiretora pela perspectiva de gênero presente nela.

Nos papos com Geraldo, como espectadores, somos levados a testemunhar suas influências filosóficas oriundas de Nietzsche e Bergson. Nesses momentos, é bem perceptível a profundidade de seu conhecimento e como isso influencia sua obra. Essa influência, principalmente a advinda dos escritos de Bergson, se faz presente de modo palpável em “Sertânia”, filme que traz tantos paralelos relacionados com a consciência, a memória e a matéria. Ao criar a estrutura narrativa de “Dois Sertões”, esse aprofundamento filosófico da obra de Sarno espelhou de alguma maneira o trabalho de vocês, seja na direção ou na montagem, para levar uma reflexão semelhante ao público?
Sim, em “Sertânia” temos uma presença muito marcante das filosofias de Bergson e Nietzsche e, não de forma menor, também do pensamento de Deleuze. Se fosse para dizer o “Sertânia” em termos deleuzianos, diria que ele traz em si a marca das imagens-tempo. Explico: em “Sertânia”, temos uma personagem incapaz de agir diante das situações nas quais se insere. O Gavião não age, ele é um cangaceiro afamado – muito conhecido por sua valentia –, mas ele não consegue agir, ele está ferido e se depara a todo momento com o intolerável. É o que Deleuze chamaria de colapso do sensório-motor. E esse colapso é uma das condições para um cinema de vidência como é o caso do filme “Sertânia.” Podemos ver isso no Neorrealismo: impossibilitadas de agir diante da realidade que as cerca, as personagens neorrealistas se deparam com situações óticas e sonoras puras, que extravasam qualquer possibilidade de resposta motora. O estímulo não se prolonga mais em resposta. Não há actantes. Já não há lugar para o hábito. Temos diante de nós personagens que vagueiam, entre a vertigem e o sonho, a caminho de nenhum lugar, em face de uma realidade que se faz de muitas formas intolerável, pela beleza ou pelo terror. É o que vemos em “Stromboli” (1950), de Rossellini, quando Karen, interpretada por Ingrid Bergman, mergulha em um delírio de beleza, diante do terrível e inevitável vulcão prestes a explodir. O mesmo acontece com o Gavião de “Sertânia”, as situações em que ele se encontra, de muitas formas, extrapolam as suas possibilidades de ação. E temos esse mergulho no tempo em que ele tenta a todo custo encontrar a figura do pai. Todavia, como em Bergson, entramos na seara de uma memória cósmica e impessoal, e o que vemos desabrochar da tela é o passado do próprio Brasil. Contudo, o Geraldo vai além, pois não só a personagem tem seu aparelho sensório-motor danificado. O mesmo acontece com o próprio dispositivo cinematográfico, que racha e revela a equipe, o extracampo. O set se engasga e vemos com isso o desfile das imagens-lembrança de outros filmes, como se o próprio cinema também fosse uma espécie de memória universal. De alguma maneira, isso me diz que é necessário encontrar, também, algo de intolerável no fazer cinematográfico, seja uma beleza capaz de nos lançar numa direção inédita, seja a dor e a alegria de resistir e insistir em fazer cinema nas periferias do mundo, sem seguir o itinerário estético dominante. Não por acaso Geraldo ter dito tantas vezes que “Sertânia” era um filme sobre o olhar, porque é esse colapso que nos remete ao tempo, nos arrancando dos clichês do cinema e nos lançando na vertigem, como videntes de um mundo outro, que subjaz sobre o véu das convenções. Entre eu e Geraldo, a filosofia sempre foi uma ponte, um propulsor, o combustível de muitas conversas. Então, sim, foi inevitável que isso repercutisse, de alguma forma, em nosso “Dois Sertões”. Porque esse filme é uma carta de despedida e, como tal, em todo ele está a presença de nossas conversas, que são algumas de nossas melhores lembranças. Como em Bergson, a todo momento esse filme diz isso: o passado não foi, o passado é. É também por isso que “Dois Sertões” traz um Geraldo velho e um Geraldo menino. Por essa razão, tudo isso segue em mim, mesmo agora enquanto respondo sua pergunta.

No filme, Geraldo fala sobre como saiu de Poções aos dez anos e caiu no mundo, deixando raízes para trás e perdendo aquela sensação de pertencimento. Até mesmo a ideia de lar, de ter uma casa, não mais fazia parte de sua natureza. Corta para alguns anos depois, e seu primeiro filme é justamente “Viramundo” (1965), que aborda essa busca do povo brasileiro por um local onde possa viver com dignidade. Encontrar com o cineasta já como alguém estabelecido, ainda ativo em seu trabalho como diretor, e abordando de certa maneira esse mergulho em sua história de vida, de alguém cuja única amarra foi o audiovisual, serviu de que maneira na criação de “Dois Sertões”?
Olhando hoje, penso que toda a trajetória do Geraldo foi um retorno para essa casa chamada Sertão. E isso se deu de diversos modos em sua trajetória cinematográfica: “Viramundo” (1965), à sua maneira e em alguma medida, é isso. O sertanejo daquele momento histórico, muitas vezes, ia para as grandes cidades a contragosto, ia para poder voltar, ter seu pedaço de terra, criar condições para ficar. Em muitos casos, o que existia no fundo desses movimentos migratórios era uma ida que já nascia como desejo de retorno. Geraldo, por toda sua vida, voltou para o Sertão. E se olhamos com atenção as suas duas últimas obras, isso também se faz presente. Em “Sertão de Dentro” (2017) a busca dessa imagem do Sertão é interior, fato que, de alguma maneira, elide a relação entre sujeito (cineasta) e objeto (Sertão), criando uma zona de indiscernibilidade entre os dois, na medida em que o Sertão passa a figurar como uma dimensão ontológica. Já em “Sertânia” (2021), o que temos é uma perspectiva trágica: é inútil buscar esse Sertão fora da gente, porque essa casa pregressa já não existe e o esforço de voltar é, na verdade, um esforço de ir na direção de algo que não se conhece. Isso está na base do nosso filme, porque temos, de um lado, o Geraldo com sua criança interior presentificada e, de outro, esse fora da criação artística dele que, mesmo depois de uma longa trajetória, continuou sendo uma aventura trágica que tinha como norte o desconhecido.

Em uma entrevista que fiz com ele em 2020, falamos sobre esse modo de fazer cinema no qual ele, mesmo já tendo a possibilidade, preferia não assistir ao que já foi captado até que já estivesse na montagem. Como essa maneira de levar sua labuta impactou vocês dois na criação de “Dois Sertões”?
Geraldo foi um mestre do cinema. O domínio que ele tinha dentro do set era algo de admirável. Sua seriedade e seu olhar agudo e atento aos mínimos detalhes permitiam que ele, mesmo em face do acaso, conseguisse tirar do real aquilo de que necessitava. Geraldo dizia que, desde sempre, seu objetivo era filmar como faz o cantador, filmar de improviso, atento à vida que acontece diante da câmera, aberto aos encontros que são, como nos diria Spinoza, aquilo que nos força a pensar. Todavia, no Geraldo, esse improviso não se dava de qualquer jeito, existia sempre, anterior ao período de filmagens, um longo trabalho de pesquisa, de aprofundamento e de invenção dos problemas a serem abordados na obra vindoura. Como na arte popular da cantoria, o improviso acontecia dentro de uma estrutura. O acaso e o caos eram bem-vindos, mas isso só acontecia sobre o estofo de uma sensibilidade trabalhada por um longo período de reflexão. Eu diria que esse aspecto da labuta do Geraldo foi o que mais nos influenciou.

Na montagem do documentário, é perceptível uma opção de vocês em não utilizar o formato talkinghead de entrevistas, focando na fala do próprio Geraldo e na ideia de reflexão sobre o nordeste em sua cultura popular. Vocês poderiam falar sobre como se deram essas escolhas?
Esse documentário passou por dois grandes momentos. Aquilo que pensávamos antes da morte do Geraldo e aquilo a que fomos forçados a pensar depois de sua partida. E embora o formato talkinghead nunca tivesse sido o caminho da nossa predileção, isso caiu por terra de vez com a mudança drástica que a partida do Geraldo nos levou a tomar. Com isso, passamos a buscar um filme mais vivo, com uma predisposição à cartografia, um desejo de ir junto, de criar um filme que se compusesse com os movimentos da experiência, interiorizado a esses movimentos. Não um filme que buscasse reconstituir o Geraldo a partir da fala de outras pessoas. Não é um filme que tenta trazer luz a uma certa imagem do Geraldo a partir daquilo que ele nunca foi, no caso, o olhar de cada um. Assim, ao invés de nos focarmos em instantâneos de um cineasta captados em depoimentos (formato talkinghead), escolhemos seguir o fluir do próprio Geraldo nessas conversas que tive com ele. Eu diria que foi um esforço intuitivo, que se distancia dos procedimentos da inteligência que lida com as partes na tentativa de reconstituir ou explicar uma totalidade, qualquer que seja. Intuitivo, é claro, no sentido bergsoniano, que distingue dois modos de conhecer: o da inteligência que, como eu disse, tenta reconstituir o todo a partir de parcialidades, rodeando a realidade aferida; e oda intuição (palavra que deriva da palavra latina intuere, que quer dizer visão ou ver), que conhece por simpatia se interiorizando no movimento, conhecendo de dentro, sem mediações externas. É nessa visada que o filme se constitui a partir de um ato simples, qual seja o de fluir com e através das falas do próprio Geraldo. E a montagem teve um papel fundamental, seja pela força criativa de Renato Vallone, seja pela sensibilidade aguçada da nossa co-diretora. O filme que tentei fazer junto aos meus amigos buscou de todas as formas possíveis ressoar com o fazer do próprio Geraldo. Afinal, éramos todos, de algum modo, atravessados pela vida dele.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador. A foto que abre o texto é de Leo Lara.



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