texto de Leandro Luz
“A Brigitte Bardot está ficando velha
Envelheceu antes dos nossos sonhos
Coitada da Brigitte Bardot que era uma moça bonita
Mas ela mesma não podia ser um sonho para nunca envelhecer
A Brigitte Bardot está se desmanchando
E os nossos sonhos querem pedir divórcio
Pelo mundo inteiro têm milhões e milhões de sonhos que querem também pedir divórcio
E a Brigitte Bardot agora está ficando triste e sozinha
[…]”
Assim como a Brigitte Bardot de Tom Zé, protagonista de uma das faixas presentes na obra-prima “Todos os Olhos”(1973), a Demi Moore de Coralie Fargeat está se desmanchando. “A Substância” (“The Substance”, 2024) parte de uma premissa absurda apresentada de maneira simples com o propósito de disparar uma conversa em torno de um assunto há tempos presente nos campos midiáticos do mundo (no cinema de Hollywood, sobretudo), mas que nos últimos anos, em virtude da presença massiva e impositiva das redes sociais nas vidas das pessoas, tem se tornado ainda mais urgente: a pressão social pela perfeição. De certo modo, Elisabeth Sparkle/Demi Moore exerce, no filme, uma função parecida com a que Brigitte Bardot opera na canção do compositor baiano. As personagens-mitos que foram marcadas por uma ideia dominante de perfeição e de beleza não podem escapar, inseridas na brutalidade da sociedade atual, da decrepitude, da tristeza e da solidão.
“A Substância” joga com muitas referências e reverencia uma série de autores que dialogaram, no passado, tanto com a crítica ao sistema estelar hollywoodiano quanto com a artesania que evoca o body horror, subgênero que lida com as perturbações do corpo a partir de uma manifestação em geral gráfica e violenta. Elisabeth Sparkle – o nome e o sobrenome sonoros e diretos ajudam a delinear a personagem desde a sua enunciação – é uma grande estrela que vive das glórias do passado, mezzo contente com as migalhas que ainda nutre apresentando o seu lendário programa de ginástica matinal (cuja representação bebe do imaginário conquistado pela famosa rotina de exercícios de Jane Fonda). Na trama, a protagonista sofre um baque ao ser demitida e, com o risco de perder a sua última conexão com o estrelato, se rende à publicidade de um produto que promete criar uma versão mais jovem e perfeita dela mesma. O produto suspeito nada mais é do que uma droga, representada por uma substância líquida amarelo fluorescente que replica as células para fazer surgir um duplo que irá hospedar, semana sim, semana não, a consciência de quem a toma.
Elisabeth Sparkle, então, passa a também existir como Sue. Consequentemente, Demi Moore precisa dividir o seu espaço com Margaret Qualley, ambas as atrizes assombrosas ao responder às respectivas intenções de cada personagem. Moore adota uma postura intrépida e pujante, que aos poucos vai dando espaço para uma espécie de fragilidade que une o ressentimento e a vulnerabilidade de uma Norma Desmond (personagem interpretada por Gloria Swanson em “Crepúsculo dos Deuses”, de 1950, clássico absoluto de Billy Wilder). Qualley, por outro lado, expressa com justeza certa ideia de perfeição, de beleza e de sensualidade – na primeira cena em que aparece dançando no lugar de Elisabeth, Sue revela a sua capacidade de renovar toda a lógica do programa de TV, ainda que beba do legado de sua “criadora”. Sue é a encarnação de uma juventude inconsequente e deslumbrada, e não à toa o roteiro de Fargeat conversa tanto com Oscar Wilde e a sua obsessão faustiana em “O Retrato de Dorian Gray” (1890).
O mais curioso em “A Substância” é como essa ideia de duplo e de coexistência ganha tanta importância. O jogo de espelhos, entabulado no enorme banheiro que será cenário corriqueiro de uma disputa intensa entre Elisabeth e Sue, materializa esse aceno em direção a Dorian Gray e seu pacto. Elisabeth se torna o retrato que envelhece, e Sue a consciência dominante do modelo que definha e enlouquece. No entanto, o que torna este filme único e o faz se desprender dessas amarras referenciais é a forma como a roteirista e diretora Coralie Fargeat lida com esses corpos que se rebelam a despeito de uma consciência que, em tese, segundo as regras narrativas concebidas por ela, seria uma só. Nas poucas orientações que acompanham a droga sorvida pela personagem, um aviso é bem claro e diz que ela e o seu duplo são a mesma pessoa. Incapaz de seguir a bula, Elisabeth e Sue se enveredam pelo abismo da dissociação de identidade.
Vencedor do prêmio de melhor roteiro em Cannes, “A Substância” segue uma trilha arriscada, privilegiando a criação de uma atmosfera que tende a harmonizar o grotesco e o jocoso – uma medida difícil de alcançar. Outro personagem importante para a trama é Harvey (qualquer semelhança com a vida real é pura coincidência, certo?), interpretado com muito apetite por Dennis Quaid, que anseia causar ojeriza imediata no espectador – e consegue! Os closes que Fargeat escolhe para registrar com minúcia o rosto do personagem, revelando os dentes amarelados pelo tabaco e com restos de alimento nas gengivas, dão conta do interesse de personificar nesta figura uma ideia de masculinidade tosca, ofensiva e perversa. Essa é a sociedade responsável por rechaçar atrizes que não mais atendem aos parâmetros de beleza impostos pela indústria. “As pessoas sempre pedem por algo novo, é inevitável”, diz Harvey. É este o juízo que destrói carreiras, manipula desejos, cria e molda hábitos. O grotesco dessa realidade é transformado, por meio da fantasia, em imagens insólitas que, sobretudo na parte final, engolem todo o filme.
Fargeat não está interessada em explicar cientificamente quaisquer premissas. A substância que Elisabeth injeta em si mesma é tão misteriosa quanto a empresa que a comercializa. Não há – ou pelo menos não nos é revelado – uma grande conspiração por trás da fabricação do soro. Acreditamos naquilo tudo porque vivemos em um mundo repleto de eventos inauditos. Aliás, um dos trunfos de “A Substância” é dizer muito com poucas palavras. O roteiro evita diálogos expositivos, favorece o desenvolvimento gradual das personagens e acredita na força das imagens que projeta. Um exemplo dessa economia dramatúrgica está no modo como a ascensão e a queda da protagonista nos é apresentada. Por meio de um plano zenital a diretora nos mostra uma estrela cimentada na calçada da fama. Fotógrafos com os seus flashes efusivos não deixam em paz uma deslumbrada e deslumbrante Elisabeth Sparkle. Em seguida, ainda que a balbúrdia tenha se dissipado, muitos turistas fazem questão de visitar o local. A câmera imóvel esculpe o tempo até que não haja mais qualquer vestígio do interesse de outrora diante da estrela dourada – empoeirada, riscada, consumida pelo esquecimento – que homenageia Sparkle. Com isso, somos capazes de entender os pressupostos fundamentais do que veremos nas próximas duas horas e meia de filme.
Durante a coletiva de imprensa em Cannes, Dennis Quaid celebrou Fargeat como uma nova autora e disse que o filme que fizeram juntos é uma mistura de Stanley Kubrick e Sam Peckinpah. O controle total que a diretora demonstra ter no tocante a todos os elementos do filme e a tendência para a selvageria acenam mesmo para esses dois grandes cineastas. Outros cineastas como David Cronenberg (vide “A Mosca”, 1986) e John Carpenter (“O Enigma de Outro Mundo”, 1982) também parecem ter um espaço cativo nas vísceras da diretora, que está sempre disposta a pegar emprestado alguns elementos desses filmes cultuados, regurgitá-los e reorganizá-los à sua maneira. A sua habilidade para a execução de boas ideias vinculadas ao cinema de horror já havia sido demonstrada em seu filme anterior, “Vingança” (2017), mas aqui a diretora dá um grande passo adiante.
Os vinte minutos finais de “A Substância” são desconcertantes não apenas pelo choque provocado por determinadas imagens, mas sobretudo pelas emoções complexas incitadas pelo acúmulo visual e sonoro. Estruturalmente, incomoda um pouco a repetição de eventos e a insistência na elaboração de pelo menos uns três clímax até de fato chegar em um encerramento, mas a impressão final é que esse estranhamento também beneficia o filme. Os olhos de Elisabeth, com o tempo, passam a se confundir com os olhos de Sue. A relação de cada uma com a própria imagem resulta em atitudes das mais inesperadas, e somos colocados em constante estado de aflição ao presenciar as suas escolhas. Escolhas essas que afetam fisicamente umas às outras – Elisabeth, em certa ocasião, após Sue ter quebrado pela primeira vez a regra dos sete dias, acorda com um “dedo de bruxa”, enrugado, envelhecido, um prenúncio de que algo está muito errado – e a dedicação de Demi Moore aqui atinge o seu pico. A direção de fotografia de Benjamin Kracun e o design de produção de Stanislas Reydellet reforçam essa ideia de conto de fadas (“Branca de Neve e os Sete Anões”, 1937) porque alternam o tempo todo entre uma vida cinza e imponente, portanto amarga, e outra de plástico, colorida, intensa, mas cheia de armadilhas.
O mundo de fora percebido por Sue entra em colapso quando ela não consegue mais ignorar a corruptibilidade da carne em curso dentro de sua casa. Elisabeth passa a não mais ter o controle sobre a sua criação. Diante deste impasse, Fargeat orquestra uma simbiose e nos apresenta uma nova versão de Elisabeth-Sue, desta vez unidas para sempre. Se em “O Retrato de Dorian Gray” o cadáver do protagonista desfigurado só é reconhecido pelos anéis em seus dedos, e pelo retrato ao seu lado, regresso à sua beleza original, em “A Substância” o ser que passa a existir diante dos nossos olhos quase não guarda resquícios de seus corpos anteriores, senão por uma protuberância familiar que insiste em não abandonar (para quem ainda não assistiu ao filme, esta descrição vaga e imprecisa será muito bem recompensada pelas imagens).
Retornando ao início deste texto, é sintomático que Tom Zé tenha lançado sua música quando Bardot ainda tinha 39 anos de idade. Demi Moore tinha 59 anos quando filmou “A Substância”. Muita e pouca coisa parece ter mudado de 1973 para 2024 e o filme, apesar de pouco otimista, aponta para um desejo de mudança fortíssimo, que deve arrebatar a quem estiver disposto a assistir.
“Será que algum rapaz de vinte anos vai telefonar
Na hora exata em que ela estiver com vontade de se suicidar?
Quando a gente era pequeno pensava que quando crescesse ia ser namorado da Brigitte Bardot
Mas a Brigitte Bardot está ficando triste e sozinha
A Brigitte Bardott agora está ficando velha, triste e sozinha
Velha e sozinha
Sozinha
Só-
zinh-
a”
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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.
Assisti e, tirando o excesso gore do final, é um filme que arrebata a consciência. Faz pensar e muito. E ter sido Demi Moore a atriz escolhida faz todo o sentido do mundo.
Eu gosto dos excessos também, hehe. A Demi Moore é um acerto e tanto mesmo.