texto de Davi Caro
O crítico Charles Shaar Murray não pareceu muito entusiasmado quando resenhou, para o semanário britânico New Musical Express (NME), o disco “Double Fantasy”, originalmente pensado como o retorno de John Lennon e Yoko Ono, em novembro de 1980: “[a vida doméstica do casal] parece ótima, mas infelizmente resulta em um disco ruim”, alfinetou. Mais além, ele “aconselha” que o ex-beatle deveria “manter sua boca calada, até ter algo vagamente relevante a dizer para aqueles de nós que não somos casados com Yoko Ono”.
Os eventos ocorridos em 8 de dezembro – menos de um mês depois – acabariam por dar um tom amargo, infeliz e talvez até insensível às palavras do crítico, tomadas em retrospecto. O assassinato de Lennon, que chocou o mundo e criou um trauma geracional que ecoaria pelas décadas seguintes, fez com que a avaliação do último álbum lançado pelo músico em vida fosse seriamente repensada. Com singles disparando para o topo das paradas nos dois lados do Atlântico, o álbum, efetivamente creditado e dividido entre o casal, acabou por ser, até aquele momento, a palavra final em uma carreira que, agora muito longe do sucesso dos Beatles, dividiu audiências e alienou muitos dos ouvintes originalmente arrebatados pelos Fab Four e pela subsequente Invasão Britânica. Morria John Lennon, o pacifista profético – nascia John Lennon, o messias relutante transformado em mártir.
Quatro anos se passariam até que as composições originalmente pensadas para (e descartadas de) “Double Fantasy” chegassem aos enlutados discípulos. Um período que pode ter sido curto demais para sua viúva, injustamente apontada por anos como a grande responsável pelo fim da banda (e finalmente redimida pelo magnífico “The Beatles: Get Back”, de Peter Jackson), e grande motivadora – indiscutivelmente – do interesse de seu marido em direção à música e arte vanguardistas. Mas pouco havia de vanguarda em “Double Fantasy”: pela primeira vez, Lennon e Ono se mostravam à vontade em um cenário que havia, ao menos parcialmente, os alcançado em um sentido artístico. Sonhadores em relação ao futuro, ansiosos pela possibilidade de ver o filho, Sean, crescer e amadurecer, e mostrando maturidade ao lidar com as discussões e diferenças domésticas, John e Yoko aparentavam felicidade. E “Milk And Honey”, lançado no início de 1984, cristaliza a nova dimensão de conforto e confiança ao mesmo tempo em que aponta para caminhos, tristemente, nunca percorridos.
De modo semelhante a seu predecessor, o dilema que existe no âmago de “Milk And Honey” tem a ver com um gigantesco “E se…?”: Lennon, em particular, se mostra esperançoso e decidido na faixa de abertura, “I’m Stepping Out”. Mais do que declarar suas intenções de se reconectar com as pessoas lá fora, a canção se assemelha à “(Just Like) Starting Over”, primeira faixa de “Double Fantasy”, à medida que o compositor se depara com a vitalidade encontrada nos anos de reclusão doméstica, se reconhecendo como um homem muito diferente daquele que de deparou com o desafio de criar um filho e assumir sua posição como dono de casa. E, em uma outra característica que o une diretamente a seu disco-irmão, a canção se beneficia do acompanhamento dos mesmos músicos que formaram a banda de apoio ao casal, com as guitarras de Earl Slick e High McKracken costurando melodias junto à base rítmica de John.
A estrutura do tracklist aqui se mantém a mesma que a vista antes, com a alternância entre canções cantadas por Lennon e por Yoko; “Sleepless Night”, a primeira faixa com Ono nos vocais principais, é marcada por uma propulsiva base disco, com vocais inquietos que exibem, inclusive, níveis de sensualidade pouco esperado por aqueles mais acostumados aos trabalhos mais abrasivos da artista. Lançada como lado B de “I’m Stepping Out”, as duas canções não apenas mostram de maneira explícita o conforto com o qual o casal abordou o material gravado nas sessões de 1980, como também elucida os diferentes pontos de vista de cada um a respeito dos elementos que os cercavam: o público, a domesticidade da vida familiar, os esforços de criar seu filho, e, claro, um ao outro.
As canções que contam com John à frente soam ora determinadas, ora incrédulas e resolutas. A relutância de “I Don’t Wanna Face It” é o atestado da insegurança que o ex-beatle relutantemente colocava em suas letras desde os anos 1960. Ao passo que George se amparava em sua devoção religiosa e sua contraditória relação com o mundo material, e Paul se utilizava de metáforas sentimentalistas para adornar suas belas melodias, Lennon nunca foi capaz de esconder seu lado mais cáustico, mesmo quando admite não ter as respostas pelas quais seu público insistentemente procurava: “dias estranhos, realmente”, ele comenta em “Nobody Told Me” – primeiro corte de divulgação do álbum, e forte candidata à melhor canção no disco.
“Borrowed Time”, com seu groove melancólico e uma letra que, em retrospecto, pode parecer mórbida, é uma das que mais se beneficiam do trabalho de produção, que contou apenas com pontuais aportes de Yoko feitos após a morte de John (uma vez que o produtor das sessões lançadas no trabalho anterior, Jack Douglas, foi demitido por Ono e mais tarde abriu um processo contra ela).
Seja como for, “Borrowed Time” é muito mais memorável do que “(Forgive Me) My Little Flower Princess”, no tipo de admissão musicada de fragilidade masculina que Lennon já havia feito, com muito mais sucesso, anteriormente; a última canção a contar com John nos vocais, “Grow Old With Me”, faz valer o esforço de driblar a tristeza que carrega quando ouvida em retrospecto. Originalmente planejada para Ringo Starr (para o disco que se tornaria “Stop And Smell The Roses”, de 1981), a canção teve seu registro cancelado, uma vez que o baterista julgou ser “triste demais” trabalhar na composição após a morte de Lennon.
Já o repertório de Yoko nos vocais consegue a proeza de ser ainda mais palatável do que o publicado em 1980: com objetivos menos aludidos, e mais abertamente direcionados – seja à John, Sean, a seu matrimônio ou à vida pública de sua família – Ono segue expondo seus pontos de vista sem medos ou receios. Basta ouvir a doce “Don’t Be Scared” ou a bela “Let Me Count The Ways” (na qual a vocalista também toca piano) para passar a entender a visão de mundo da artista na virada da década: longe de esconder os problemas pelos quais seu casamento passa, Yoko explora seus dilemas com maturidade e compreensão.
“O’ Sanity” é uma das mais incisivas representações de dificuldades domésticas em um catálogo repleto delas. Já “You Are The One” se destaca por ser a única composição registrada em sessões posteriores, com sua gravação de estúdio datada de 1982 – além, claro, de sublinhar as relações de Ono com o electropop, que se acentuariam ainda mais com o passar da década.
O único ponto negativo neste quesito é quase totalmente circunstancial: em meio às composições que acabaram sendo destinadas ao álbum póstumo, uma acabou sendo utilizada oficialmente na compilação-tributo “Every Man Has A Woman” (pensada por Lennon como um presente para Yoko) sendo lançada inclusive como single em 1984, mas não fez parte de “Milk And Honey”: “Every Man Has A Woman Who Loves Him”, uma música de “Double Fantasy” cantada por Yoko, que na compilação aparece (mais curta e) com Lennon como a voz principal – o vocal principal de Ono foi retirado e a mixagem trouxe o vocal de apoio de Lennon para a posição principal, tornando-a efetivamente uma música de John.
Das melhores composições de Yoko desta época, “Every Man Has A Woman Who Loves Him” ressurgiu como single (com as duas versões) em 2001, mesmo ano em que passou a fazer parte do tracklist da reedição remasterizada de “Milk And Honey” em CD, acoplada ao álbum como faixa-bônus (juntamente com uma entrevista concedida pelo casal a uma estação de rádio, no dia do assassinato de John, e duas demos). Ela seria retirada do disco (assim como todos as bonus tracks dos demais discos remasterizados em 2001) no reempacotamento da discografia de John em 2010 para a “John Lennon Signature Box”, mas seria incluída na coletânea “Gimme Some Truth. The Ultimate Mixes”, de 2020.
Como já era de se esperar, a recepção a “Milk And Honey” dificilmente escaparia do peso de ser – como se mantém até os dias de hoje – o último disco de estúdio de um ícone intergeracional cuja morte mudou potencialmente o curso da história da cultura pop. Algumas críticas da época, no entanto, já davam um passo para além do luto, e em direção ao escrutínio que havia contaminado a percepção popular dos álbuns que John havia lançado depois de 1972. “Talvez a consequência mais triste do falecimento de Lennon” escreveu Don Sheway para a Rolling Stone de março de 1984, “seja que ele e Yoko estavam prestes a dividirem com o mundo, através de sua arte, vislumbres reais de uma relação extraordinária que já havia sobrevivido tempos difíceis”. O crítico conclui com “É uma pena que eles não possam ter seguido em frente”.
Vale também contextualizar a visão que o mundo tinha, aliás, dos outros ex-Beatles na mesma época: enquanto Ringo Starr sofria com vícios que o deixavam em estado semi-funcional enquanto músico e George Harrison dava mais atenção ao estúdio de cinema que havia ajudado a financiar, Paul McCartney, sempre perseverante, dava um passo adiante ao estrelar e produzir um filme que desafiaria a boa vontade do público. Além de contar com novo material, “Give My Regards To Broad Street” também contava com regravações dos Fab Four (nas quais Ringo, que participa do filme, se recusou a colaborar), que já indicavam os esforços de Macca em assumir um controle semidemocrático sobre o legado de sua antiga banda – ainda que a ausência de seu parceiro/nêmesis (“Martin Luther Lennon”, como mencionou em entrevistas) o colocasse em um patamar complicado junto aos fãs.
É Yoko, porém, quem finalmente alcança sua merecida redenção aqui. Em um mundo pós-“Get Back”, de Peter Jackson, se tornou inegável a injustiça sofrida por parte da artista, execrada ao longo dos anos por muitos dos admiradores de seu marido por, supostamente, ter separado a parceria criativa mais importante do século. Mas 1984 era uma época muito, muito diferente; “Milk And Honey” talvez não tivesse sido possível se Ono não houvesse exorcizado muito da tristeza e da fúria que a atormentavam em seu “Season of Glass” (1982), onde sonoridades pós-punk já indicavam que a cantora já se sentia à vontade em uma nova era, que John não viveu o suficiente para ver. Agora, ela era a sobrevivente, a porta-voz suprema de uma figura que tinha, e ainda tem, significado inestimável para inúmeras gerações; e seus detratores teriam que aprender a viver com isso.
As gerações seguintes – particularmente aquelas crescidas em um mundo onde os Beatles já eram figuras mitológicas quase além das aspirações humanas – tomariam para si a tarefa de atenuar o julgamento e o desrespeito perpetuado pelos muitos “fãs” que vieram antes. A história provaria que o esforço seria compensado: se “Milk And Honey” mostra John Lennon como um indivíduo que fez as pazes com seu passado, aprendeu a conviver com seu presente e se mostrava entusiástico a encarar um futuro que nunca viveria, Yoko Ono já demonstrava viver em seu próprio futuro; uma realidade que a maioria de seus ouvintes, Don Sheway e Charles Shaar Murray entre eles, se mostrava muito aquém de conseguir conceber. Em suas canções, que representam diálogos, ele é alçado ao status de lenda através do martírio; ela, por sua vez, canta como se tais ideais pouco importassem, traçando um plano de vôo que, ao fim, atravessaria sozinha.
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– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.