texto por Luciano Ferreira
Menos de dois dias antes que “Everything is Alive” (2023), quinto álbum do Slowdive, fosse oficialmente lançado, o grupo disponibilizou “Alife”, quarto e último single do novo trabalho. Não deixa de ser surpreendente que um álbum de oito faixas tenha sido apresentado em exatos cinquenta por cento antes de seu lançamento. Essas quatro canções iniciais – “Kisses”, “The Slab”, “Skin the Game” e “Alife” – mostraram um direcionamento musical mais para o lado dreampop do que para o shoegaze ou a ambient-music, vertentes presentes no arcabouço musical do grupo e espalhadas em seus quatro álbuns com ênfases diversas em cada um deles. Esse direcionamento exposto nas novas faixas parecia contradizer ou pelo menos ir de encontro às declarações de Neil Hastead – guitarrista, vocalista e principal compositor do grupo – a respeito das composições terem surgido a partir de suas experiências com sequenciadores durante a pandemia.
Mas é quando somos, enfim, apresentados à “Everything is Alive” em sua totalidade que é possível entender tudo que o vocalista vinha afirmando desde o início do ano (e a banda insinuando já de algum tempo) e encontrar o DNA do novo trabalho. Elas são expostas de forma bastante evidente no protagonismo inicial dos sintetizadores que abrem a introdutória faixa (e também o álbum) “Shanty”. Quando os elementos eletrônicos vão aos poucos sendo encobertos pelas camadas de guitarras, mixadas em primeiro plano e envoltas em distorção e reverberações, e se misturando aos vocais de Neil e de Rachel Goswell, é que se percebe que este é realmente um álbum do Slowdive – ainda que seja aqui o momento singular do disco em se tratando do uso de distorções.
Formado por composições criadas por Neil durante a pandemia, a partir do que deveria ser um álbum solo, esse quinto trabalho do grupo surge marcado pela morte: Rachel perdeu a mãe e o baterista Simon Scott, o pai. Não há como não perceber a atmosfera de melancolia transmitida por boa parte das canções. Sentimento que se intensifica, por exemplo, na instrumental “Prayer Remembered”, onde camadas de sintetizadores gélidos se unem a riffs etéreos de guitarras e um baixo profundo para compor uma canção de clima invernal que remete de forma direta ao The Cure de “Disintegration” (1989), inclusive na forma como a bateria se insinua no arranjo. Apesar do clima que constrói, a faixa foi escrita num momento luminoso, dias após o nascimento do filho de Neil, Albert.
Esse mesmo sopro pode ser também encontrado nas ambientações espaciais da reflexiva “Andalucia Plays”, faixa composta em 2012 e que se conecta ao Slowdive mais viajado e minimalista, características presentes na fase “Pygmalion” (1995). Há aqui uma proximidade do Slowdive com os trabalhos de Brian Eno (uma das influências da banda), em conexão com faixas como “By This River”, só que com o toque do Slowdive: guitarras reverberantes e baixo denso. Aqui também que fica mais evidente o quanto o álbum poderia ser tomado como um álbum solo de Neil, não fosse a abertura que ele deu para que seus companheiros pudessem dar novos direcionamentos a suas ideias iniciais ou aplicar o “conceito” Slowdive” ao trabalho. Se o instrumental é quase minimalista, a faixa é a que tem a mais versos em um álbum de canções de versos curtos. A letra é bastante pessoal, fala de um relacionamento, e Rachel se recusou a cantar: “Você é meu anjo / Vestindo sua camisa favorita / Tecido francês e bolinhas / ‘Andaluzia’ / Toca no aparelho de som / Eu sonho como uma borboleta / Perfeito e temporário”, e traz referência a canção presente em “Paris 1919”, clássico disco de John Cale, lançado em 1979.
“Alife” surgiu a partir de uma estrutura que se conectava ao krautrock – é a única composição na qual há um componente externo à banda participando, a esposa de Neil, Ingrid. A banda pretendia uma mistura de Smiths com Fleetwood Mac, e acabou se tornando um desafio para Shaun Everett, que assina a mixagem de seis das oitos faixas do disco – a produção é do próprio Hastead. Simples e direta, a faixa abre com o que é o refrão – a repetição da frase: “Duas vidas são vidas difíceis com você” -, e é uma das canções mais acessíveis e diretas do álbum, um dreampop com camadas de teclados recobrindo-a junto de sequenciadores, enquanto os versos são repletos de saudade: “Onde o rio atravessa / A cidade, há uma lembrança de você / Não olhe, não olhe para mim agora / O tempo me pegou de alguma forma”.
Outro dos singles, “Kisses” é também um dreampop delicado e grudento, repleto de sutilezas, e de formatação das mais pop já criadas pelo grupo, “culpa” do uso da repetição (“Kisses / Born desert sun”). Pode ser comparada a “Alison” – faixa se “Souvlaki“, de 1993 – em sua força enquanto canção pop.
A participação de Rachel nos vocais é bastante discreta. Seu trabalho resume-se, em geral, a fazer backing vocals ou adicionar camadas de vozes etéreas para criar climas oníricos, algo que ela costuma(va) fazer como convidada em trabalhos de outros artistas. E é ao analisar sua participação nas vozes do álbum que a predominância de Neil novamente pode direcionar para a ideia de um álbum dele com a participação dos outros membros do Slowdive. Há algum mal nisso? Nenhum. Neil sempre foi e segue sendo o principal compositor do grupo, embora a química Slowdive funcione efetivamente quando os cinco estão reunidos. Importante lembrar que alguns membros estão dividindo o Slowdive com outros projetos musicais: Beachy Head, The Soft Cavalry, Minor Victories. Partilhar essas canções com a banda foi a forma que eles encontraram para manter-se unidos, para reaproximar o grupo num período de várias dificuldades.
“Everything is Alive” é um álbum em que sutileza e força melódica se unem para criar canções de estrutura relativamente simples, arranjos de base repetitiva e que, por isso, fixam na mente do ouvinte como nenhum outro já composto pelo Slowdive. A melodia eletrônica repetitiva que atravessa todo o arranjo da longa e viajada “Chained to Cloud”, única das faixas em que Rachel é a protagonista nos vocais (e uma das duas que não teve a mão de Everett no mix, a outra é “Shanty”), fortalece esse sentimento. A faixa é o exemplo mais claro para se entender a forma como muitas das canções surgiram, já que, conforme o próprio Neil afirmou, ele não tinha vontade alguma de pegar na guitarra na época, preferindo os sintetizadores. Nesse sentido, o trabalho de Everett, ao conseguir equalizar os dois lados presentes na maior parte das composições com essas duas faixas de Neil, é nada menos que fantástico – e plenamente reconhecido pela banda
A sensação aqui é de que o Slowdive promove a junção do lado ambient de “Pygmalion”, sem cair na armadilha de subestimar a importância de cada um de seus integrantes, com as texturas mais melódicas de “Slowdive” (2017), praticamente abandonando as guitarras distorcidas em prol de timbres limpos, cristalinos. É uma escolha também em “The Slab”, encerramento do disco, onde as batidas surgem mais pesadas, mas mantem-se dentro da proposta mais climática que perpassa todo o disco. A faixa é uma mistura de camadas de sintetizadores densos e guitarras etéreas.
Apesar de uma obra curta no número de canções, principalmente quando se sabe que a quantidade de demos na qual Neil trabalhou foram cerca de 70, os pouco mais de 40 minutos no qual o álbum está assentado não permitem a sensação de um álbum rápido. Pelo contrário, “Everything is Alive” é uma obra densa, bela e com a sensação agridoce de beleza melancólica, enriquecida pelo uso de eletrônica e camadas, e emoldurada pelas texturas e timbres de guitarras embebidos em delay, pelas vozes embrulhadas em efeitos de eco. Um álbum em que o Slowdive se permite olhar para o passado e para o futuro entendendo que ambos são o presente e que “tudo está vivo”.
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– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.