por Homero Pivotto Jr.
A trama da HQ “Sobreviventes da Fronteira” não tem inspiração direta em alguém específico. Mas, nessas coincidências em que a vida imita a arte, aparecem personagens do plano real que se assemelham com os da aventura ficcional de Fred Rubim. É o caso do arquivista Paulo Caramês. Nascido em Alegrete (a 150 quilômetros de Uruguaiana), ele descobriu Ramones na primeira metade dos anos 1990 e tornou-se um ávido pesquisador e colecionador da obra e do legado deixados pelo quarteto. A devoção, além de um acervo considerável, rendeu ainda um blog repleto de informações e curiosidades sobre praticamente tudo ligado aos Ramones. No site Sequela Coletiva, há entrevistas (com gente como o fotógrafo oficial da banda, George DuBose, e o irmão de Joey, Mickey Leigh), artigos sobre catálogo (lançamentos oficiais e bootlegs, livros, vídeos etc), artes gráficas, fotos, shows e outros temas relacionados ao grupo que popularizou a contagem “1,2,3,4” e o bordão “hey, ho! Let’s go!”.
“Em 1991, então com 12 pra 13 anos de idade e influenciado pelo gosto musical da minha mãe, eu já ouvia atentamente a obra dos Beatles e, principalmente, de Elvis Presley. Um vizinho que considerava ambos ultrapassados emprestou um LP sem capa e garantiu que aquilo mudaria a minha vida. Era o “Rocket to Russia”, terceiro álbum dos Ramones, lançado originalmente um ano antes de eu sequer existir”, recorda Caramês, que complementa:
“Não posso atribuir a minha predileção instantânea nem aos temas das músicas dos Ramones, pois não sabia uma vírgula de inglês. E, menos ainda, o visual deles me impactou, já que só descobri a foto do quarteto punk em frente ao muro próximo ao CBGB ou a arte fenomenal de John Holmstrom quando minha vida já havia sido transformada pela velocidade e sonoridade que o bolachão apresentava da primeira à última faixa. Os demais elementos do senso comum ramônico trataram mais tarde apenas de consolidar a mudança premeditada naquele empréstimo vinílico. De lá para cá, acabei acumulando cerca de mil discos da banda em diferentes formatos e informação suficiente para ao menos três livros (se um dia chegar a lançá-los). Além disso, pude vivenciar shows de ex-integrantes com suas carreiras solo em estados e países diferentes. E, não menos importante, considere as inúmeras amizades fruto desse gosto em comum pelos Ramones. Ou seja: posso afirmar que aquele disco realmente mudou tudo sim.”
Sobre a importância do punk para um jovem de região fronteiriça, Caramês analisa: “A realidade no interior do Rio Grande do Sul é de grande dependência da agropecuária para o resultado econômico. O folclore gaúcho em forma de música, vestimenta e costumes da região é outro fator crucial, pautando a vida cotidiana — principalmente na fronteira oeste gaúcha. Estamos falando de uma cidade que, na época, tinha menos de 90 mil habitantes em contraste gritante à Londres, Nova Iorque ou São Paulo. Mas tradições tão ligadas à vida do homem do campo não refletiam a dinâmica jovem e urbana, mesmo que em uma cidade interiorana. Esse cenário acabou sendo ideal para abrigar um movimento que tem em seu DNA o protesto e a rebeldia contra padrões pré-estabelecidos e a luta de classes de maneira muito enfática. O choque visual de um corte de cabelo moicano ou calça jeans rasgada foram um prato cheio para adolescentes expressarem seu descontentamento e ganharem confiança nessa fase crucial de autoafirmação, ainda mais em um ambiente excessivamente conservador e patrimonialista.”
Segundo Caramês, ele não foi o único da cidade em que morava a encontrar na música — mais pontualmente no punk — um instrumento de expressão e inconformismo. Isso porque a cidade acabou por se tornar polo do gênero em solo gaúcho à época, com outros jovens insatisfeitos aderindo aos ideais contestadores do estilo.
“Quando a desigualdade social se apresenta de forma tão latente acaba gerando quase que exclusivamente dois resultados opostos: há os que batalham para serem aceitos como parte do sistema e quem considera que ser visto como excluído é mero combustível de contestação, mudança e consciência. Revisitando recortes de jornal do passado, pude relembrar a relevância que o movimento teve no Rio Grande do Sul — e surpreendentemente nos jovens alegretenses, um dos principais redutos punk no estado naquela década de 1990. Se a internet democratizou o acesso à informação e a instantaneidade na distribuição de conteúdo, a realidade daqueles tempos pré-web era cruel. A escassa informação circulava em fanzines xerocados à exaustão e na troca de fitas de bandas britânicas, ou também da recém-formada cena punk paulistana, o que facilitava a compreensão das incendiárias canções de bandas como Cólera, Ratos de Porão e Inocentes (para citar algumas). Também me fez perceber que a dificuldade em conseguir um emprego, por exemplo, era um dilema comum independentemente do idioma ou sotaque. Entendi que problemas sociais não estavam atrelados ao quão cosmopolita fosse sua origem — alcançando também uma cidade que fica longe demais dos grandes centros, sendo facilmente mais reconhecida por seus eventos nativistas e desfile folclórico do que como berço de uma cena underground. Em resumo, o punk nunca respeitou fronteira, e isso é o melhor de tudo.”
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.