texto por Ana Clara Matta
fotos (1 e 2) de Keone Barbosa
“Quando você se junta à pista de dança você está forjando uma aliança, mesmo que breve, com centenas, talvez milhares de pessoas. Dançar é uma ação coletiva, fazendo de você um participante ativo. Você entrou em um acordo silencioso de fazer algo JUNTO – assim como protestar ou votar.” Bill Brewster e Frank Broughton, Last Night a DJ Saved My Life – A History of the Disc Jockey
“We were built to be two enemies
But somehow I know, we’re meant to be
This world’s a battlefield, I will be your shield
We got something real, worth disrupting the peace
We’ll disrupt the peace
Yeah, keep on moving
Beat the system, autopilot cruising
Tunnel vision victory, no losing
Heaven knows it’s one hell of a ride
Better hold on tight, better hold on tight” aespa, Hold on tight
Final de 2020, auge da pandemia. Enquanto a indústria musical mundial quebrava a cabeça para ressignificar a experiência de consumo de música pop para os novos tempos isolados e artistas faziam discos intimistas, menos convidativos para a apreciação coletiva e mais focados em um banquinho, um violão e muito álcool gel, o KPOP lançava sua brilhante estratégia de realização de shows online de grande porte – nada como as lives que pipocaram pelo Brasil, mas shows completos, com ingresso, palco super produzido, filmagem multi câmeras e interação com o público. Fãs que entraram na subcultura durante a pandemia passaram anos consumindo um gênero musical apenas mediado por telas, sem conhecer a experiência de ver suas bandas favoritas – e outros fãs – ao vivo. Críticos se arriscaram a resenhar transmissões, grupos em redes sociais se movimentavam para trocar links e dicas. E claro, nada mais confortável do que ver seu artista favorito do conforto do seu sofá, sem banheiros químicos, em um espaço que a fila é no máximo um pequeno engarrafamento na porta da cozinha para pegar a pipoca. Se em shows de grande porte você realmente acaba apenas vendo o telão, o que exatamente buscamos numa experiência de música ao vivo? Porque, no final das contas, sentimos tanta falta do que perdemos durante esse período?
Après Corona, le déluge. A reabertura pós vacinação completa trouxe o Brasil para a rota das bandas do gênero. Após a vinda de diversos Boygroups, no dia 11/09 aconteceu o primeiro show de um grupo feminino dessa nova fase em solo brasileiro, com o quarteto aespa subindo ao palco perante um Espaço Unimed absolutamente lotado. O que Karina, Giselle, Winter e Ningning presenciaram em São Paulo foi uma demonstração do poder catártico que a coletividade tem, um exemplo do porquê a experiência de música ao vivo nunca será substituída pelo digital.
Talvez o mais correto seja pensar nessa dicotomia como a dicotomia entre esportes transmitidos pela TV e o ambiente do estádio. Claro que você vê cada lance com mais detalhes pela TV, mas quando você vai a um jogo você paga não só pela partida – você paga pela oportunidade de incentivar o time e pelo convívio com uma comunidade de pessoas que dividem contigo uma paixão. Benjamin fala sobre a aura do artista e sobre como o acesso a presença dessa pessoa célebre ou de seus rastros é o que nos atrai – mas também existe uma espécie de caminho inverso. A oportunidade de dar de volta um pouco da energia que o artista te deu é aproveitada em gritos, cartazes, projetos criativos e letras cantadas a plenos pulmões. Os MYs, fãs da banda aespa, receberam o grupo com notas de dólares impressas com as caras das integrantes, banners com frases de carinho, presentes, e “eu te amo”s que preenchiam o espaço entre as canções cantadas em harmonia pela banda e público presente. As integrantes se emocionaram de maneira genuína com as homenagens, citando que nem a torrente de “come to Brazil” recebidos constantemente por Instagram as prepararam para recepção calorosa e inesquecível que o grupo teve no país.
Com três discos lançados, o aespa trouxe para o Brasil uma setlist extremamente abrangente de cada momento de sua breve carreira, tornando quase impossível para um fã ou ouvinte casual apontar falhas na seleção de músicas. A narrativa do show, que bem no início vai introduzindo as membras e convidando os fãs pro jogo com aenergy, é impecável. Cada segmento é iniciado por uma performance solo de uma das integrantes, e segue o clima setado por essa performance. Hits como a obra-prima hyperpop “Savage”, “Spicy” e “Next Level” se destacaram em performance e recepção, mas b-sides como a eclética “Yeppi Yeppi” e “Hold on tight”, surpreendente fatia de synthpop lançada para o filme Tetris, fizeram o Espaço Unimed também tremer. A habilidade vocal de Winter e Ningning, vocalistas principais do grupo, fascina. A voz de Winter mostrou até mesmo uma certa materialidade em sua projeção – como se seu volume fosse tão impressionante que mesmo nos camarotes você ouvia suas notas altas para além da amplificação do microfone. Com o flow versátil de Giselle e a presença de palco magnética de Karina não existem pontos fracos em performance no aespa.
O público presente era exemplar em sua diversidade e o respeito imperava no ambiente, o que foi refletido pela resposta arrepiante no momento em que Ningning e Giselle pegaram a bandeira do Orgulho LGBT de um fã e rodopiavam pelo palco envoltas nas cores do arco-íris. Ningning pegaria ainda da plateia a bandeira lésbica naquele mesmo segmento. A coletividade, quando diversa assim, dá um ar político para experiência do show. Algo foi dividido ali, por aquela plateia, que ecoa uma sociedade perfeita – chamem de Kwangya se quiserem, o tal universo fictício digital no qual as bandas da gravadora SM (na qual o aespa está incluído) habitam.
O digital é parte da narrativa do aespa. Desde a estreia da banda cada integrante possui um “avatar” digital chamado “ae”, com poderes e funções em uma espécie de time de super-heroínas. No início do show, elas introduzem o conceito por trás do nome da turnê, Synk: Hyper Line – onde o aespa real, este aespa digital e os fãs se unem em um espaço apenas. Mas não se deixe enganar pelas projeções de figuras digitais no telão – a experiência do show do aespa é uma experiência que reforça a fé no que há de concreto na música. No talento humano para além da perfeição de qualquer IA. Na vivência compartilhada do espaço da fandom. E na possibilidade de dividir com seu artista favorito um momento impossível no espaço digital. Uma aliança explosiva que faz até mesmo uma crítica em um site parecer impotente, virtual demais para expressar a realidade.
– Ana Clara Matta (@_ana_c) é editora do Ovo de Fantasma e escreve para o Scream & Yell desde 2016.