texto de João Paulo Barreto
Em qualquer visita feita a exemplares da extensa obra de Ingmar Bergman, não há como sair incólume da experiência. Comemorando 105 anos de seu nascimento neste 14 de julho de 2023, precisar pinçar um filme na estante para simbolizar seu legado é um trabalho difícil. Há uma necessidade de se preparar psicológica e fisicamente para tal tarefa. Nesse intuito, revisitei alguns dos seus clássicos essa semana. “Monika e o Desejo”, “Persona”, “O Silêncio” e “Gritos e Sussurros” me levaram novamente pelos caminhos psicológicos de um olhar exclusivamente feminino, que o diretor conseguiu tão bem representar. “Sorrisos de uma Noite de Amor” nos aproxima de um perfil de comédia romântica que o cineasta desenhou à maestria. Inevitavelmente, retornei a “O Sétimo Selo” e “Morangos Silvestres”, filmes que, ainda que realizados no mesmo ano (1957), denotam caminhos dispares nas abordagens psicológicas do diretor sueco no que se refere a um otimismo esperançoso vinculado a nostalgia, e à desesperança pessimista atrelada à inevitabilidade da morte. E por aqui fiquei.
Talvez, escolher essas duas obras especificamente dentre as mais de sessenta que o realizador tem em seu currículo, sendo produções para o cinema e para a TV, se justifique por esse contraste que ambas possuem. Não somente pelas imagens simbólicas que atraem o cinéfilo para tais marcos do cinema bergmaniano, como a partida de xadrez ou o sorriso melancólico do professor a revisitar seu passado, mas lançar um olhar paralelo a esses dois filmes, símbolos do legado de Bergman, é tentar encontrar um equilíbrio entre suas duas propostas aqui: a da esperança e a do pessimismo.
A escolha de “Morangos Silvestres” pode até refletir a idiossincrasia de uma personalidade nostálgica e saudosista, mas o que se leva consigo após o término do filme é a mesma sensação de completude que o protagonista Isak Borg teve no reencontro de suas memórias afetivas. Das imagens oriundas dos vívidos sonhos do professor, surge a sua impulsão em se reencontrar com o passado. Quando a morte lhe espreita em um pesadelo silencioso, ao ver a si mesmo em um caixão caído de uma carruagem cujo eixo danificado parece ecoar como o choro de um recém-nascido, Isak percebe a necessidade de repassar suas memórias. Morte e nascimento; esperança e pessimismo são constantes e estoicamente agonizantes nos dois pilares de Bergman. “Morangos Silvestres” e “O Sétimo Selo” se complementam em uma reflexão acerca de sentimentos tão díspares.
Diante de todas as cenas marcantes de “O Sétimo Selo”, o impacto mais extenuante emocionalmente não foi o icônico jogo de xadrez com a personificação da Morte em sua visita ao cavaleiro na praia que o salvara, ou o encontro do mesmo Antonius Block (Max Von Sydow) com a “bruxa” condenada à fogueira pela culpa na peste. Ou nem mesmo os momentos de graça feitos pelo cavaleiro descrente de qualquer confiança nas mulheres ao predizer todas as falas da infiel esposa no pedido de perdão ao marido; ou, ainda, a última cena com parte dos personagens sendo levada para o além em uma dança macabra nas montanhas.
Mesmo diante de tamanho peso, a mais profunda cena de um filme que traz tantas reflexões acerca das tragédias de um mundo áspero e sem esperança é representada por um fugaz momento de felicidade. Nela, o cavaleiro Block conversa com o casal de artistas circenses enquanto come morangos silvestres (em uma clara referência para Bergman trabalhar o conceito de nostalgia em sua outra obra) e se permite falar sobre sua esposa que espera reencontrar. Ao ouvir os planos futuros daqueles pobres artistas, Antonius ousa sonhar da mesma forma. Ousa ser contagiado por uma esperança e fé em um futuro brilhante para si próprio. Seu sorriso traz um consolo, sua alegria, mesmo que frágil, nos faz sentir o mesmo sentimento daquele homem.
No momento seguinte, seu destino já fadado a ser interrompido pela fria mão da Morte lhe é recordado com a aparição da própria. Seu semblante muda por um rápido segundo, mas volta a ficar desafiador contra aquela figura pálida, vestida de preto. No entanto, a realidade já lhe derrubou. Não há sentido naquela sua alegria. Como um paciente em sobrevida, que tem momentos de ilusão na melhora do seu quadro, aquela sensação de felicidade do cavaleiro não perdura. Sua vida e seu destino, já estão entregues. Resta-lhe a dignidade de partir aceitando sua condição. Dignidade que, tragicamente, ele perde no seu último momento, quando o desespero diante de sua ruína lhe abraça.
Ingmar Bergman completaria 105 anos agora. Partiu há dezesseis, aos 89, deixando uma completude artística única. Dono de uma filmografia que primava pelo domínio na direção de atores, perfeição aprimorada em anos de experiência no teatro, tinha como uma de suas marcas os closes fechados em rostos expressivos e a análise de sentimentos que causavam tormentas tantos em seus personagens quanto em seu espectador fiel. Sua obra completa encontra-se acessível àqueles cuja curiosidade aguçada se equipara à mesma resiliência artística de seu criador. Eu ainda voltarei mais vezes à nostalgia de Isak e a outros encontros com a criatura pálida trajando preto.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.