texto por João Paulo Barreto
Quando as imagens de um drone emulam a câmera em primeira pessoa que representava a flutuante e veloz chegada de forças macabras à floresta onde a amaldiçoada cabana do diretor Sam Raimi ficava em “Evil Dead”, seu clássico de 1981, “A Morte do Demônio – A Ascensão” (“Evil Dead Rise”, 2023), novo exemplar a reinventar a trilogia oitentista (mesmo que o terceiro seja de 1992), faz valer seu cunho de homenagem. Ao mesmo tempo, porém, busca uma identidade própria. E a alcança. Claro que, neste ponto, com uma perceptível dose de ironia enrustida, fica evidente naqueles floreios de enquadramentos frenéticos captados pelo já comum e clichê tipo de equipamento voador, a ideia de um lembrete ligeiramente cômico de suas origens. Isso, claro, pelo fato de que nunca víamos a quem ou a o que pertencia àquele ponto de vista advindo do inferno. Além disso, aqui, serve como uma crítica à citada banalidade que se tornou o uso de tal artifício técnico no cinema feito atualmente.
Mas, ao revelar-se para o espectador como uma câmera daquele tipo, o novo filme quebra (de forma sarcástica, claro) um dos mistérios símbolo da mitologia “Evil Dead” e denota um desprendimento da trilogia clássica. Assim, apesar do breve prólogo a se passar em uma floresta semelhante a que já conhecemos das versões originais (bem como na fraca refilmagem de 2013), uma mudança geográfica do local onde a tal ascensão das forças malignas acontecerá é definida. Porém, mesmo que toda trama dessa nova incursão se passe em um prédio urbano de Los Angeles, a sensação claustrofóbica que tínhamos na cabana se transfere de modo bem eficiente, principalmente quando a real câmera em primeira pessoa a representar tais forças malignas surge e alcança sua primeira vítima.
Chegando ao livro dos mortos (objeto cuja leitura abre as portas do inferno possibilitando a vinda dos possuidores de corpos) a partir de um bem conveniente abalo sísmico que dá acesso a um cofre bancário localizado debaixo do tal prédio, o novo exemplar da reimaginada história tem, neste ponto, uma licença criativa para focar no chocante espetáculo visual. E este banho de sangue acabará sendo o tom de todos os 100 minutos do filme.
Na história, o reencontro de duas irmãs, uma delas, Beth (Lily Sullivan assumindo o posto de heroína durona), que acaba de se descobrir grávida, e a outra mãe de dois adolescentes e de uma criança, gera a ideia comum a vários filmes do gênero de horror: aquela ligada a um processo de renascimento, de início de uma nova fase repleta de resoluções a serem cumpridas. Claro que a leitura do livro dos mortos, junto à gota de sangue que, sem querer, cai como uma oferenda aos espíritos macabros e famintos presentes naquele calhamaço, representará, sim, uma nova fase. Mas não tão otimista quanto as duas esperam. Porém, fazendo valer sua presença como a ‘badass’ da vez, Sullivan chega bem próximo do posto do eterno Ash vivido por Bruce Campbell.
A série de possessões que se segue a partir da inicial tomada do corpo da outra irmã, Ellie (Alyssa Sutherland mostrando dedicação ao papel), dá início, para o filme, aos eventos que acabam por defini-lo. Trata-se de um show de horrores no melhor sentido da palavra, mas, no entanto, tão vazio e carente de espírito (sem trocadilhos) quanto os cadáveres que são preenchidos com entidades do mal e que voltam à vida. E quando esse texto se refere a tal carência, o ponto de principal ausência é quando nos lembramos da tensão repleta de alívio cômico que Sam Raimi construiu com os mesmos elementos há mais de quarenta anos. No atual, apenas o suspense em sabermos quem será o próximo possuído nos guia pela pouco mais de uma hora e meia de projeção.
Obviamente, apesar de sua simplória estrutura narrativa calcada apenas em “contágio”/ possessão/ mutilação /perseguição, não seria justo com o atual material não valorizar o resultado final horripilante advindo do modo como o diretor Lee Cronin cria as citadas mutações de suas criaturas de humanos para seres oriundos das trevas.
Os sons que vêm dos ossos se ajustando ao modo como suas locomoções passam a ser animalescas tanto no solo como em paredes, e não mais humanoides; as automutilações envolvendo taças de vinho sendo mastigadas em grotescamente suculentos cacos de vidros que descem rasgando garganta abaixo; a maneira como as ilustrações do livro ganham vida em corpos que se mesclam dentro daquelas mesmas mutilações. Tudo isso são elementos que, em cena, garantem o vívido show de horrores foco do público-alvo daquele tipo de cinema.
E durante os momentos de fuga e frenesi psicótico, toda uma sequência envolvendo um elevador e galões de sangue em uma bem-vinda homenagem a “O Iluminado”, livro clássico de Stephen King adaptado para o cinema por Stanley Kubrick um ano antes do “Evil Dead” original, dão ao espectador atento aquele sorriso de canto de boca característico à percepção do “entendi o que você quis fazer aqui, caro diretor Lee”.
Do mesmo modo, vale citar a inserção de uma serra elétrica que surge em cena de maneira surpreendentemente orgânica quando toda a atividade da trama em seu clímax se transfere do apartamento da família para a garagem do prédio na qual uma debastadora de árvores jaz estacionada de modo convenientemente oportuna para nosso encerramento em grande estilo. Assim, quando a sanguinolenta pose da heroína no melhor modo “groovy” a remeter ao Ash original surge, percebe-se que qualquer outra maneira de encerrar aquele caos satânico de vísceras e hemoglobina seria insuficiente.
Mas sempre voltaremos à cabana e à loucura de Ash decepando a própria mão possuída e malcriada. Vale mais a pena.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.