texto de abertura por Herbert Moura
faixa a faixa por Bruno Del Rey
Desde 2018, o cantor e compositor Bruno Del Rey vem lançando singles e EPs influenciados pelas raízes do soul e pela música e a estética produzida nos anos 60. Com o surgimento de vozes como Sharon Jones & The Dap Kings, Charles Bradley e até Amy Winehouse, uma crescente cena de retrosoul vem se estabelecendo em todo o mundo.
Del Rey enveredeou pelo estilo seguindo as lições da escola soul brasileira criada por Tim Maia e Cassiano. “Artistas dessa corrente revivalista do soul foram buscar suas referências em cantores e cantoras dos anos 50 e 60, especialmente os americanos. Eu também fui muito influenciado por eles – pelo blues, pelo jazz e finalmente pelo soul americano –, mas sou brasileiro, então fui fundo na influência do gênero aqui no Brasil, desde Wilson Simonal a Tim Maia e Cassiano”, diz o artista.
“O Que Serve de Motor” (2023), seu novo trabalho, conta com 10 faixas autorais produzidas por Rafael Aragão. O álbum, lançado pelo selo francês Groover Obsessions, está disponível em todas as plataformas digitais e deve ser lançado em vinil no próximo semestre. “’O Que Serve de Motor’ remete ao que buscamos como combustível, ao que nos faz abrir os olhos, que nos inspira e motiva a seguir adiante, ao que aquece o peito e confere propósito à vida”, comenta Bruno, que comenta o disco faixa a faixa abaixo!
“O Que Serve de Motor”, comentado por Bruno Del Rey
01) “Dead Soul”: Sem dúvida, a letra mais emblemática do disco. O interessante é que me veio à cabeça como um sopro, rápida. Melodia e harmonia, já vinha trabalhando há um tempo, mas a letra veio como que do inconsciente. Imagens de sensações, uma história sobre morte, abismo e redenção. Sobre todas as deturpações e desvios que temos que matar em nós mesmos ou nos outros e como isso traz a “inevitabilidade de uma alma vazia”. Me permiti explorar bem as possibilidades com a voz e a melodia dos sopros é uma das que mais gostei de fazer com Rafael Aragão porque trouxe essa sensação ao mesmo tempo fúnebre e inspiradora, tal qual a letra. Foi o primeiro single do álbum a ser lançado.
02) “Exale Busca por Compreensão”: Pra mim, um dos pontos fortes do arranjo que fizemos são os metais. Lembro-me de me inspirar muito em bandas instrumentais de retrousoul como Menahan Street Band, The Olympians e também na atmosfera dos naipes de Jorge Ben na década de 60. Já tinha a canção quase pronta há mais de 1 ano antes de começarmos a gravar, mas fui lapidando no decorrer de ensaios. Gosto muito da mensagem na letra também, achei que acertei na tradução do sentimento de busca que temos ao longo da vida. A letra é um diálogo na verdade, com a vida.
03) “There’s a Flower Blooming in My Chest”: Visceral. A letra é um pouco mais direta, ainda assim com metáforas que sintetizam bem o desabrochar de dores e descobertas. Assim como em “Dead Soul”, me doei bastante na voz e o arranjo da banda é bastante intenso. Estava pesquisando timbres em Alabama Shakes e The White Stripes e ouvindo muito O.V.Wright, um cantor soul de Memphis (mais lado B que seus contemporâneos dos anos 70) que trazia características mais obscuras e pesadas. Foi o último dos três singles lançados que anunciavam o álbum.
04) “O Cara do Terno Preto”: Foi uma das primeiras canções que compus para esse trabalho solo, ainda em 2016 e 2017. Eu já havia lançado a música no meu primeiro EP: “Respire Fundo e Diga 33” (2017). Pouca coisa mudou dessa primeira versão em termos de estrutura, porém, elementos como metais, timbres e linguagem vocal foram incorporados para que déssemos a roupagem do disco e a trouxéssemos para um lado mais soul de fato. Ainda assim, a faixa conserva características pop originais bem fortes que a diferem um pouco das outras canções do álbum. A letra fala sobre introspecção, exposição e vulnerabilidade.
05) “Black’n’White Shot Photographer”: A canção tem bastante influência do r’n’b e do rock do começo dos anos 50. Queríamos trazer essa atmosfera por ser uma faixa mais dançante. Fizemos a marcação de sax barítono muito utilizada no estilo à época, tanto em bandas de r’n’b e blues quanto nas bandas dos primeiro rocks que brotavam, do blues/soul de Sam Cooke ao blues/rock de Bill Halley and His Comets. De maneira bem humorada, a letra trata de momentos em preto e branco como metáfora para tristes memórias de um relacionamento rompido. Em algumas faixas do disco optamos por enfatizar a harmonia vocal, essa é uma das principais. O refrão é sempre cantado numa harmonia de três partes, outro elemento bastante utilizado nos anos 50.
06) “Sigamos Juntos”: Com batida mais funkeada, a faixa é guiada instrumentalmente por um consistente riff de guitarra e baixo. A letra se distingue das outras pelo conteúdo mais político. Apesar disso, sob um viés de humanização e revalorização do intelecto e da cultura muito mais do que uma abordagem histórico-acadêmica. Compus em meio às crises políticas, institucionais e (por quê não?) humanas que o Brasil passava nos últimos anos. A mensagem se faz bem clara ao clamar por não nos esquecermos, darmos as mãos e indicar que somente juntos poderíamos achar uma direção.
07) “Passe Bem!”: Letra ácida e divertida sobre um relacionamento frágil e ainda buscando descobrir-se. Esteticamente talvez a faixa mais diferente do álbum por não ser um soul, muito mais um folk com ecos de Jazz Manouche. Quando a escrevi, buscava algo ao estilo Manouche de Django, um jazz anos 30/40 no qual a harmonia vocal de três vozes se destacasse, à la trilha sonora de “Bicicletas de Belleville”. Com o tempo, elementos mais folk foram mesclando-se à canção, dando-lhe mais corpo até chegarmos à nossa maneira.
08) “Ain’t No Mari”: Harmonicamente, essa canção vagueia pelo jazz, soul e blues. A melodia é forte, densa, pensava muito em Sharon Jones (& The Dap Kings) para cantá-la. A letra, que brinca com o nome Mari(Juana) fala sobre experiências com a erva e como certas sensações podem “combinar com o sucesso mas não com o fracasso”. Gosto particularmente das dinâmicas que usamos nos arranjos, da introdução mais jazzy à explosão do segundo verso para depois oscilar novamente entre calmaria e explosão. O final faz uma referência às canções de baile anos 50 com mudança rítmica e backing vocals característicos. Uma dose de inocência que contrasta com o contexto e tema da canção.
09) “O Toque Amoroso do Gin”: Segundo single do disco a ser lançado. Uma faixa muito especial por ser a única sem percussão e onde a mescla entre blues e jazz se faz mais presente. Assim como Billie Holiday considerava-se uma cantora de blues, eu vejo “O Toque Amoroso do Gin” como um blues essencialmente. O jazz derrama-se na cobertura e é especialmente enfatizado com o solo de trompete, maravilhosamente executado por Marco Stoppa, trompetista e co-fundador da Nomade Orquestra. A única participação especial do disco. A letra vai fundo na consciência de dores e revoluções internas, sobre a morte, ou o desejo dela frente a decepções da vida. Mas também fala sobre renascimento e sobre apreciar o caminho da vida em “prosa” não somente quando “poesia”. Até agora, minha canção mais ouvida nas plataformas de streaming, o que é interessante justamente por ser a canção mais “balada”, talvez a conexão com as palavras tenha sido o forte com as pessoas, talvez a entrega que atingimos na gravação tenha ajudado com essa conexão também, talvez a vulnerabilidade e honestidade nas palavras ainda valha muito, talvez as pessoas gostem muito de Gin.
10) “O Que Serve de Motor”: Canção que dá nome ao álbum. Tem duas partes bem distintas e complementares, uma em português e outra em inglês, o que ajuda ainda mais a enfatizá-las. Apesar disso, não houve espaço de tempo na composição de ambas, foram escritas para serem o que são, duas partes de um todo. A primeira, confesso, a inspiração foi Tim Maia quando compunha seus primeiros souls, baladas sofridas e lindas. Fiz também de maneira arrastada e melancólica. A segunda parte, que conversa diretamente com a introdução da música, traz um funk arrastado, malandro, Bill Withers deu a direção e nós fizemos do nosso jeito. O contraste funciona pela coerência com a letra e ao final, acho que trouxe um groove interessante. Essa dualidade é o que nos serviu e serve de motor.
Lembro-me de Bruno Del Rey, ainda bem jovem, na Banda Rockassetes. Hoje um cantor e compositor experiente, mostrando toda a sua maturidade nas letras, melodias e na forma de cantar.
Esse seu novo trabalho, “O que serve de motor”, está excelente.
Parabéns, Bruno Del Rey.