texto por Luciano Ferreira
Iggy Pop tem história na música. E que história! Ela está registrada ao longo de sua não tão extensa discografia, onde podem ser encontrados alguns discos clássicos. Para além disso, o Iguana, como também é conhecido, construiu uma reputação inescapável a partir de sua presença de palco, marcada pelo uso intenso do corpo, seja através de automutilações públicas ou performances com um nível de fisicalidade e confrontação pública inimagináveis para muitos frontmans (quem o viu dando um mosh – dois, na verdade – aos 68 anos no Popload, em São Paulo, em 2015, entende bem). Some a isso tudo períodos de envolvimento pesado com drogas e uma fase praticamente na sarjeta.
Apesar dos excessos em sua carreira, Iggy ainda é um ícone, um ídolo que segue aqui entre nós, um sobrevivente, alguns dirão. O fato de manter-se na ativa, lançando álbuns, por si só, é algo a ser celebrado tanto por quem segue acompanhando sua trajetória musical quanto por quem, em algum ponto de sua longeva e tortuosa carreira, resolveu renunciar à música composta pelo “padrinho do punk”.
Para os últimos, a advertência de que os dois álbuns anteriores do músico, cada qual ao seu modo, são trabalhos bastante consistentes. “Post Pop Depression” (2016), produzido e composto com a ajuda de Josh Homme (do QOTSA), emula seus momentos mais luminosos da década de 70 e 80; enquanto “Free” (2019) mostra uma interessante e inusitada faceta, com canções lentas e soturnas, algumas com approach jazzístico e experimentações – um caminho em que as guitarras foram deixadas de lado e pode não agradar aos mais ortodoxos.
Para quem prefere Iggy no que se pode chamar de habitat natural, à frente de canções com mais “pegada”, o recém-lançado “Every Loser” (2023) tem alguns desses ingredientes, ainda que a ideia de um álbum voltado para sonoridade esporrenta, como mostrado no feroz single “Frenzy”, se desfaça ao longo do percurso.
“Frenzy”, assim como “Neo Punk”, são os dois únicos momentos de maior crueza do disco. Na primeira, Iggy berra que está em frenesi e já abre a canção (e o disco) cantando “Tenho um pau e duas bolas, isso é mais do que todos vocês / Minha mente ficará doente se eu sofrer as picadas / Então cale a boca e me ame, porque a diversão é minha amiga / Todos os tubarões no mar estão esperando por mim”, numa letra cuja a mensagem tem endereço certo. “Neo Punk” é mais crua e direta (musicalmente falando), espécie de alerta do septuagenário Iggy de que ainda tem lenha para queimar, ao mesmo tempo em que dá aquela alfinetada no que o punk se tornou: “Tenho um Rolls-Royce personalizado, sou um neo punk / Tenho uma mancha na voz, sou um neo punk”. Seu sorrisinho de maroto de satisfação/diversão ao final deixa isso bem claro.
Se no álbum anterior, Iggy tinha como parceiro de composições e produção Leron Thomas, músico de carreira construída no jazz, aqui quem assume a função é Andrew Watt (que compõe e toca guitarra), jovem produtor com um currículo de colaborações que inclui Eddie Vedder, Elton John, Miley Cirus e Justin Bieber, só para citar alguns. As participações especiais contam com nomes como Dave Navarro, Josh Klinghoffer, Chad Smith, Duff McKagan, Travis Baker (Blink 182), Eric Avery (Janes Addiction), Stone Gossard (Pearl Jam). Alguns destes formam a banda de apoio de Iggy, o The Loosers.
O falecido baterista Taylor Hawkins aparece nas faixas “Comments” (com a bateria ao estilo Stephen Morris, do Joy Division/New Order), em que Iggy despeja seus sentimentos em relação às redes sociais, e “The Regency”, uma das canções mais incríveis do álbum, com um trabalho de bateria vigoroso de Hawkins e interessantes timbres de guitarra, algo marcante também em “Strung Out Johnny”, outra das canções com um quê oitentista.
Entre “rockões” poderosos como “Modern Day Ripoff” e “All the Way Down”, homenagem à Andy Warhol (“The News for Andy”) e à cidade de Miami (“New Atlantis”), críticas às redes sociais e canções de vibe oitentistas, o novo disco de Iggy Pop é um sopro de vitalidade em sua carreira, mostrando um vigor verborrágico e musical incríveis. Há espaço ainda para uma balada, “Morning Show”, em que Iggy imposta uma voz cavernosa e assume o eu lírico para falar de um artista que se retira da ribalta, mas que cumpre com maestria sua função até o último instante: “O palhaço que você amava está morto”, “Vou consertar minha cara e seguir”, são algumas frases da canção.
“Every Loser” soa como um disco aberto, sem preocupação com uma coesão interna que parta do início ao fim. É um direcionamento diferente dos trabalhos anteriores, onde era perceptível que os pontos de partida e chegada se uniam. Aqui o “seguir o fluxo” é a tônica, compor canções e colocá-las todas num disco. A persona (voz) de Iggy, no fim, harmoniza tudo e dá sentido maior para um grande álbum (ouça as 11 faixas abaixo).
– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell. A foto que abre o texto é de Liliane Callegari / Scream & Yell (veja outras)