texto por Leonardo Tissot
Finalmente disponível no Brasil via YouTube (embora sem legendas em português – assista no final do texto), o documentário “Where Are You, Jay Bennett?” (2021), de Gorman Bechard e Fred Uhter, revela detalhes sobre a vida e a morte de um músico acima da média, que fez fama como multi-instrumentista do Wilco. Bennett entrou no Wilco em 1995 e participou dos álbuns “Being There” (1996), “Mermaid Avenue” (1998) e “Summerteeth” (1999), tendo sido demitido da banda durante as gravações do clássico “Yankee Hotel Foxtrot”, quarto álbum do grupo. Uma edição super deluxe do disco chegou ao mercado recentemente, em celebração aos 20 anos de seu lançamento original.
Além dos recursos tradicionais de filmes desse tipo — depoimentos de familiares, amigos e colegas de banda, bem como imagens de arquivo da infância do músico —, o documentário intercala gravações de entrevistas antigas de Bennett, imagens de arquivo do artista em ação com e sem o Wilco, animações que ilustram passagens da vida do instrumentista (lembrando “Montage of Heck”, doc sobre Kurt Cobain, apesar do óbvio orçamento mais curto) e até mesmo trechos da versão em áudio da biografia do ex-colega de banda Jeff Tweedy.
Fica claro desde o início que o filme tem como principal objetivo desconstruir a imagem de Bennett criada no documentário “I Am Trying to Break Your Heart”, do cineasta Sam Jones, que mostra os bastidores das conflituosas gravações de “Yankee”, no começo dos anos 2000. Depoimentos como o de Jonathan Parker (gerente de produção da banda na época), do biógrafo Greg Kot (autor de “Learning How to Die”, um dos melhores livros sobre o Wilco) e de outras figuras que compunham o “entourage” do grupo apontam na mesma direção: Jones manipulou o público ao criar uma dinâmica de herói/vilão em seu filme — o que estaria muito longe de representar a realidade.
Uma das cenas mais problemáticas de “I Am Trying to Break Your Heart”, segundo essa visão, é a da discussão de Bennett e Tweedy a respeito da transição entre as faixas “Ashes of American Flags” e “Heavy Metal Drummer”, que termina com o vocalista indo ao banheiro do estúdio para vomitar, reforçando o suposto estresse durante as gravações de “Yankee”. O mal-estar de Tweedy, porém, teria ocorrido dois dias antes, e a edição do filme seria enganosa, afirmam os entrevistados.
Outra cena bastante criticada de “I Am Trying to Break Your Heart” é a cobertura de um show solo de Bennett feita pela equipe de filmagem do documentário. Jay aparece sozinho sobre o palco, em um plano fechado, tocando “My Darling”, canção do Wilco de 1999. Deprimentes, as imagens levam o espectador a pensar que a Bennett teria restado apenas viver de antigos sucessos em apresentações para meia dúzia de gatos pingados. O músico Edward Burch, que estava no palco com Bennett (apesar de não aparecer na cena), tem uma visão diferente: “O lugar estava lotado naquela noite”, afirma, em meio a imagens da dupla tocando diversas outras canções que não faziam parte do repertório do Wilco. Procurado para dar sua visão a respeito do próprio filme, Jones não quis conceder entrevista.
Ainda em defesa de Bennett, o documentário tenta desfazer sua imagem de viciado em remédios e de ‘starving artist’, sem condições de pagar por atendimento médico (como se sabe, os Estados Unidos não têm um sistema público de saúde). Sofrendo com um problema nos quadris, o plano de saúde do músico não cobriu o tratamento, por considerar o caso como doença preexistente, após anos de intensos esforços físicos na estrada e nos palcos. Assim, Bennett estaria economizando para pagar pela cirurgia que precisava por conta própria e, nesse meio-tempo, se medicava com uma espécie de cinta que administrava os remédios que aplacavam suas dores. Por um erro na dosagem, o músico acabou falecendo na noite de 24 de maio de 2009, aos 45 anos.
Apesar do inevitável final trágico, o filme também destaca aspectos positivos da vida de Bennett: a carreira solo, com cinco discos lançados após sua saída do Wilco, bem como seu talento natural para a música, a obsessão com detalhes, a habilidade em usar o estúdio como um instrumento a mais e a sua marca indiscutível no som de uma das maiores bandas dos últimos 30 anos. Ficou faltando apenas a palavra de seus ex-colegas de Wilco, que, com a exceção do ex-baterista Ken Coomer, não aparecem no documentário.
Mais do que determinar quem é o herói ou o vilão da história, o filme cumpre o importante papel de reconhecer Bennett como um grande talento que nos deixou cedo demais. E, apesar de não ser exatamente imparcial, a obra tem o mérito de fugir de fáceis dicotomias reducionistas. Assim, apesar do caráter “limpa-barra”, “Where Are You, Jay Bennett?” tem muitos momentos palatáveis a todos que em algum momento foram tocados por sua música — principalmente para que se tenha uma compreensão mais clara a respeito do homem e do artista obstinado que impressionou colegas e fãs, algo muito mais valioso do que os mitos que o cercam.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo