entrevista de Bruno Capelas
Um gigante da atuação brasileira, Sérgio Mamberti (1939/2021) teve uma carreira múltipla, trafegando entre o teatro, o cinema e a televisão. Foram mais de 50 filmes, dezenas de novelas e séries, inúmeras peças, em um espetáculo contínuo cujas cortinas se encerraram no início de setembro. Ele foi marcante: mesclava uma interpretação clássica com uma presença humanista e política, em textos que iam de Plínio Marcos a Shakespeare, de “O Bandido da Luz Vermelha” a “Toda Nudez Será Castigada”. Mas foi num programa de TV para crianças que Mamberti, um ator que não se pode resumir a um só papel, encontrou seu maior personagem: o feiticeiro Victor Astrobaldo Stradivarius Victorius I… “raios e trovões!”, o Doutor Victor de “Castelo Rá-Tim-Bum”.
Filmado entre 1993 e 1994, o “Castelo” cristalizou o ator para inúmeras gerações de crianças. Ele mesmo reconhece isso: “O Doutor Victor dá de dez em uma novela global de grande audiência. Eu fiz papéis importantíssimos durante cinquenta anos, mas ele marcou de um jeito diferente”, diz o ator nesta entrevista, concedida em 2014, ano em que o “Castelo” completava 20 anos. Realizada na casa de Mamberti no bairro da Bela Vista, em São Paulo, a conversa faz parte da pesquisa do que se tornaria, anos depois, o livro “Raios e Trovões – A História do Fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”, publicado pela editora Summus em 2019. Esta é a primeira vez que ela é publicada em sua íntegra.
Na conversa, ele fala bastante sobre o personagem que o eternizou para gerações de crianças – como a inspiração em Leonardo da Vinci, a busca por valores humanistas e até mesmo o Doutor Victor como parte da simbologia de novos modelos de família. “O Doutor Victor cria o novo conceito da família. Os magos do ‘Castelo’ tinham aquela organização familiar maluca: tem aquela mulher que é a Morgana, que é mais velha que o Doutor Victor. O Nino não é filho, é sobrinho; tem as crianças que chegam do mundo exterior e vêm conviver… mas todo mundo está representado ali”, diz.
Fundador do Partido dos Trabalhadores e presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte) durante o governo Lula, Mamberti também fala de política, educação e cultura. Ele chega a fazer uma análise precisa (e hoje, talvez profética) sobre a última década brasileira. “Não basta se dar emancipação econômica às pessoas, sem uma equivalência do ponto de vista cultural e educacional. Uma grande parte do contingente que saiu da miséria absoluta ou ascendeu de classe foi, imediatamente, capturado pelo capitalismo mais selvagem, que é o do consumo. E eles estão se voltando contra tudo o que foi, eles são mobilizados pelos interesses que movem a sociedade de consumo.”
Além disso, o ator também conta histórias deliciosas de como foi reconhecido pelo personagem (de uma aldeia de índios bororo no Xingu a uma campanha política na Praça da República) e reflete sobre o legado do “Castelo Rá-Tim-Bum”, uma criação que, em sua visão, completou o ciclo de uma obra de arte. “No seu sentido mais completo, uma obra de arte acontece quando ela começa a criar uma relação com quem ela se dirige. E é um processo de transformação, nunca é a mesma coisa, nunca se repete”, diz Mamberti. E se o pano cai, a história de um gigante fica.
Para começar, como é que a sua história se cruzou com o “Castelo”?
Desde 1969, eu trabalhei na Fundação Padre Anchieta (proprietária e gestora da TV Cultura e das rádios Cultura FM e Cultura Brasil). Eu não queria ir fazer televisão no Rio, novela, essas coisas, então a TV Cultura foi uma possibilidade real para mim. Era uma emissora de salários pequenos, mas era constante. Então eu fiz muita coisa lá dentro (nos anos 1970): eu fiz teleteatros (peças de teatro filmadas para a TV), telecontos, telecursos… e fiz o primeiro programa infantil da TV Cultura nos anos 1980, o “Curumim”, bem antes do “Rá-Tim-Bum”. Nessa fase do “Curumim”, a dramaturgia adulta já tinha praticamente se encerrado na Cultura, e aí eu fui obrigado a me deslocar para fazer novelas no Rio, pelo menos uma vez a cada dois anos. A TV Tupi tinha falido, então a opção que a gente tinha na época (para fazer televisão) era ir para a Globo. Para você ter uma ideia, a Globo não dava condução e nem pagava ônibus pra gente. Cansei de gravar novela nos anos 80 e voltar de ônibus com a Laura Cardoso para São Paulo. E não davam hospedagem também. Foi só mais tarde que a Globo começou a ter que conquistar os artistas, porque começaram a surgir outras opções de mercado e eles tiveram que começar a ter esses benefícios, hotel, passagens, essas coisas.
Na época das gravações do “Castelo” você estava fazendo novela?
Isso, em 1993, foi: eu estava fazendo “Olho no Olho” e tive que pedir autorização da Globo para gravar uma vez por semana no “Castelo”. O convite foi natural: um dia eu fui na Cultura para fazer alguma coisa pontual, e a Bia Rosenberg e o Cao Hamburguer me chamaram. Cao é um velho amigo e eles me falaram desse momento que a Cultura estava vivendo, na gestão com o Roberto Muylaert, e ele estava fazendo um trabalho muito importante ali. Achei fascinante a ideia que eles tiveram e aceitei o convite. Eu me equilibrava entre Rio e São Paulo nessa época, às vezes gravava duas vezes por semana aqui, dependia das necessidades. O ritmo de gravação do “Castelo” era bastante trabalhoso, porque não tinha nenhuma tecnologia, era tudo artesanal, não tinha computação gráfica, nada disso. Não tinha ar condicionado no estúdio na época.
Muita gente lembra do calor no estúdio durante as gravações. Era quente assim?
Tinha hora que a gente precisava abrir os estúdios para deixar o ar entrar. Aí a gente enxugava o suor, refazia toda a maquiagem, esperávamos meia hora e voltávamos para gravar. Isso é para você ter uma ideia das condições que a gente tinha ali, mas era todo mundo apaixonado e a qualidade do produto sempre foi muito boa.
Antes da gente falar mais das gravações, eu queria falar do personagem Dr. Victor. Como foi para você montar esse personagem, que é uma mistura de feiticeiro, de inventor…
O “Castelo” é atemporal, então a figura do Doutor Victor está muito mais ligada ao conceito, vamos dizer, de ciência e criação que existem no início da Renascença, com Leonardo Da Vinci, por exemplo. Eu me inspirei muito no Da Vinci para criar o doutor Victor. Já o lado mágico faz parte, há todo um universo de fantasia, né? Mas também tem outros aspectos importantes. A coisa mais maravilhosa dele, para mim, é o seguinte: ele cria o novo conceito da família. Os magos do “Castelo” tinham aquela organização familiar maluca: tem aquela mulher que é a Morgana, que é mais velha que o Doutor Victor. O Nino não é filho, é sobrinho; tem as crianças que chegam do mundo exterior e vêm conviver, mas todo mundo está representado ali. E o Doutor Victor é um homem, mas ele é o maior parceiro do Nino, brinca com ele, entra totalmente na dele e na dos meninos. Ao mesmo tempo, quando o Nino faz algo que não deveria fazer, ele também é absolutamente passional, visceral, sem hipocrisia alguma, explode em raios e trovões! O Doutor Victor faz uma proposta de valores interessante, porque ele não impõe nada, ele cria uma autonomia, um processo de cidadania que vem por meio do conhecimento, da solidariedade e da criação, entende? Ao mesmo tempo, sempre tem esse lado do humor, algo que perpassa, e o “Castelo” tem essa mistura, essa multiplicidade de linguagens, com boneco, música, comportamento, e aí de repente entram os bonecos, os quadros, os bonecos da lareira, a Celeste, uma cobra que quer ter braço, é a serpente mítica, uma sedutora que mora no Castelo, o Porteiro, o Doutor Abobrinha, é uma infinidade de estímulos para a criança…
É algo que sempre me chama a atenção quando penso no “Castelo”…
Tem muitas linguagens, e todas o “Castelo” domina. É fascinante: as crianças chegavam para mim depois que eu gravei o programa e falavam: “Cuidado com o Doutor Abobrinha, Doutor Victor, ele quer demolir o Castelo para fazer um condomínio!”. Depois que o programa estreou, a repercussão junto ao público começou a ser extraordinária, e rebatia em todos os ambientes. Eu entrava na casa de pessoas de poder econômico, da alta burguesia, e os filhos eram fãs do “Castelo”, até um chofer de táxi, que se emocionou ao me ver. Ele me disse: “Você salvou a vida do meu filho. Ele não queria comer, estava num processo anoréxico complicadíssimo. Mas ele adorava o ‘Castelo’, estava assistindo ao programa e eu disse para ele que se ele não comesse, eu ia chamar o Doutor Victor, e aí ele passou a comer!”.
Que demais isso.
Tem mais! Quando eu era presidente da Funarte e estava no Ministério da Cultura (na gestão de Gilberto Gil, durante o governo Lula), eu fui para uma aldeia dos índios bororo. Na época, eles estavam tentando recuperar os rituais tradicionais da aldeia, os rituais fúnebres. Eles tinham um ritual próprio, porque eles enterravam os corpos com pouca terra, regavam para a terra apodrecer as carnes e as vísceras, e aí depois executavam a lavagem dos ossos. Os padres que ali chegaram disseram para eles que isso era anti higiênico e proibiram o ritual. E os índios ficavam inconformados, porque quem morria e não tinha os ossos lavados não conseguia entrar na outra dimensão deles, ficava preso aqui na terra. A aldeia deles era circular, e os padres também fizeram eles construírem a aldeia toda quadrada, houve toda uma violência nesse aspecto. A gente estava tentando recuperar isso com os índios e quando eu cheguei lá, com o Gil, ia ter um ritual para nos saudar. Quando terminou o ritual, um monte de indiozinhos, cheio de peninhas, todos pintados, vieram correndo para mim e começaram a gritar: “Tio Victor, Tio Victor!”. Isso no meio do rio Xingu, eles assistiam o “Castelo” pela televisão, foi muito emocionante.
Imagino que o senhor tenha muitas dessas histórias de ser reconhecido… o senhor sente que ficou marcado pelo personagem? Tem atores do próprio “Castelo” que não lidam bem com isso…
Eu fiz papéis importantíssimos durante cinquenta anos, mas o Doutor Victor marcou de um jeito diferente: ele foi formador de gerações. Onde quer que eu vá, eu tenho que falar “Raios e Trovões!”. Reunião com a UNE, Sesc Pinheiros, num restaurante, a cozinheira, o manobrista, todo mundo pede foto, é uma loucura, as pessoas ficam emocionadas, tremem as mãos. O Doutor Victor dá de dez a zero numa novela global com muita audiência, é muito impressionante. Uma vez eu estava na Amazônia, perto de Tucuruí, e o avião em que eu estava teve que descer para reabastecer. Havia uma pista de pouso e uma cabaninha, eu fiquei sentado num banquinho ali esperando. E quando eu vejo começam a aparecer muitos menininhos e menininhas me reconhecendo, foi uma loucura. Outra história que me marcou muito foi em 1996, quando nós fomos fazer a campanha para a Luiza Erundina (então candidata à prefeitura de São Paulo pelo PT). A gente fez uma ação chamada de Palanque Cultural: era o contrário do habitual, os políticos não falavam. A gente ia, fazia uma apresentação cultural e depois a população que se reunia ali tinha a oportunidade de se dirigir ao político e fazer seus pedidos. Fizemos um desse na Praça da República, e o primeiro que quis falar foi um menino de uns 14 anos. E ele pediu para que eles fossem restituídos e livrados da humilhação. Ele não pediu comida nem estudo, mas apenas respeito à dignidade deles e que eles não fossem tão humilhados. Aí ele me reconheceu e falou do “Castelo”, como um exemplo positivo, porque ele e os meninos que ficavam na Praça da República viam o “Castelo” nas vitrines das lojas de TV, e eu fiquei muito tocado de ouvir isso. É muito emocionante saber o que a gente pode fazer com a cultura do País. Acho que um dos problemas que a gente está enfrentando hoje, com relação às conquistas que foram feitas no nosso governo, é que não basta se dar emancipação econômica às pessoas, sem uma equivalência do ponto de vista cultural e educacional. Uma grande parte do contingente que saiu da miséria absoluta ou ascendeu de classe foi, imediatamente, capturado pelo capitalismo mais selvagem, que é o do consumo. E eles estão se voltando contra tudo o que foi, eles são mobilizados pelos interesses que movem a sociedade de consumo. A gente teve a vaia na abertura da Copa para a Dilma… e eu concordo com o Gilberto Carvalho (chefe de Gabinete do governo Lula e ministro chefe da Secretaria Geral da Presidência na primeira gestão Dilma), que disse que não tinha sido só a elite branca que vaiou a Dilma. O Lula disse que tinha sido só a elite branca e depois retirou, não adianta ficar escondendo o sol com a peneira. Essa era uma preocupação grande que nós tínhamos no Ministério da Cultura, mas nem sempre os governantes percebem. E olha que se fala muito em educação…
Educação virou um mantra.
Mas sem educação, a cultura parece só adestramento. Ela passa a ser um conjunto de regras, mas ela não transforma. Eu acho que o que tem de maravilhoso no “Castelo” é que ele tem papel transformador. Ele era educativo, mas com a dimensão cultural, e talvez seja nesse sentido um projeto revolucionário. A gente tem que prestar atenção nisso. Confio muito no Cao, conheço toda a família, sei de onde ele veio, de como ele foi formado. São pessoas de esquerda, mas ligados a um processo cultural, o tio dele era o Flávio Império. O Cao foi criado no meio desse conceito e o Flávio tinha muito essa visão renascentista, da cultura misturada com ciência, com invenção, com ética e com esse lado mágico da vida. Mas o Cao compartilhou essa criação com todos nós. A riqueza do “Castelo Rá Tim Bum” vai muito além da ideia original: é um conjunto de fatores, não existe um dono do “Castelo”. O “Castelo”, na verdade, é da população que contribuiu bastante, a obra de arte só se completa assim, na minha opinião. Nesses 20 anos, já vimos cinco ou seis gerações Rá-Tim-Bum, e não foi só no Brasil: eu já fui reconhecido como Tio Victor em Cuba, na Espanha, na Venezuela…
Você falou do Cao agora… e pra gente falar das gravações em si, queria começar perguntando como ele era. Dizem que ele era muito exigente, você sentia isso também?
Como o Cao criou a série, ele tinha um ritmo muito lento para gravar. Acontecia que as gravações não estavam correndo no ritmo que tinham que correr, porque ele estava o tempo inteiro reelaborando aquela coisa de quem criou, “hmm, não ficou tão bom”. Do ponto de vista industrial, estava tendo um prejuízo. Aí ele resolveu chamar o Fernando Rodrigues de Souza, que era um diretor de TV, e o Cao passou a fazer uma pós- avaliação, a partir do que estava gravado e o que ele não gostava, ele regravava. A preocupação do criador de fazer com que o produto ficasse bom atrapalhou, e aí ele percebeu que o projeto ia além dele e aquele cuidado que ele estava tendo, em vez de estar facilitando, dificultava.
O “Castelo” era mais artesanal que, por exemplo, uma novela da Globo?
Tecnologicamente, era bastante inferior à Globo. A produção era bastante artesanal, tudo se fazia várias vezes. Não havia computação gráfica, era tudo no braço, na criação. Por outro lado, isso fez o nível de criatividade que se desenvolveu ali ser excepcional. Os manipuladores de boneco, os bonequeiros, os meninos do ateliê, os figurinos, as camareiras, todo mundo dava sua contribuição e se sentia pertencente à coisa. Foi uma experiência fantástica.
É algo que transpassa para a tela. Você vê toda a magia ali…
Eu me sinto encantado, fascinado com o programa, até hoje quando eu vejo, eu fico absolutamente seduzido pelo programa. O ator não é um agente externo ao processo: ele passa pela magia. O processo de criação do ator é um processo mágico, e até hoje eu fico impressionado com a criação do “Castelo”. As imagens são muito densas: elas têm muita informação e criatividade, então você pode viajar em vários níveis.
Além do programa de TV, o senhor pode voltar a ser o Doutor Victor em “Castelo Rá-Tim-Bum: O Filme”, de 1999. Como foi retornar a esse personagem cinco anos depois?
Foi um processo de síntese. Havia elementos diferentes: os cenários eram imensos, já havia tecnologia, efeitos de computação, o personagem da Marieta Severo, a Losângela… mas tudo se encaixou perfeitamente. O Nino também era uma criança, não mais um adulto: a gente entendeu que o Nino adulto no cinema não ia funcionar. E o próprio Doutor Victor mudou: no cinema, ele deixou de ser um homem da Renascença e virou um cientista, uma coisa meio Einstein. Eram novas feições.
Você gosta do resultado do filme?
Eu acho que o filme, do ponto de vista de acabamento, é extraordinário, a gente achou que as crianças ficaram um pouco assustadas,porque o filme tinha o lado mais de suspense.
Quando eu era criança, eu achava muito sombrio.
O filme é bem mais escuro, é sombrio, porque tem o lado da ameaça. E os vilões também são mais malvados. Na TV, eles eram mais lúdicos, mesmo o Mau era divertidíssimo. Já a Losângela, na hora que transforma a Morgana e o Doutor Victor em bonecos de madeira, deixava as crianças desesperadas. Era mais declarado.
O Museu da Imagem e do Som (MIS-SP) está (em 2014) para estrear uma exposição sobre o “Castelo”. Como é para o senhor ver esse reconhecimento, de uma forma mais institucionalizada?
Vai ser muito emocionante. Acho que vai ser uma festa muito bonita. Ainda acredito que a TV Cultura ainda vá assumir o “Castelo” direito. O “Castelo” foi bem mal trabalhado, dada a audiência que teve. O resultado econômico que poderia ter vindo dessa audiência, que foi bastante grande, bem sucedida, não foi devidamente usufruído por nós. A gente não ganhava muito, também não ganhou muito com os produtos depois. Para quem participou, em termos de imagem foi uma consagração, mas o restante foi bem mal trabalhado. Pense na Disney: há ali uma indústria, mas tudo tem um nível de qualidade. E o “Castelo” tinha esse potencial: podia ter uma Rá-Tim-Bum-lândia, podia ter os produtos do “Castelo Rá-Tim-Bum”, mas eles foram mal trabalhados. Os livros (da Companhia das Letrinhas) foram bacanas, mas tinha caderno, lápis, lancheira… tudo meio mal feito.
Por que você acha que aconteceu isso?
Acho que os contratos foram muito mal feitos e subestimaram a exposição e o que o “Castelo” poderia ser. Não acho que a gente deva transformar numa Disneylândia, que é uma feira de produtos, mas se ao mesmo tempo… um parque temático com esse universo do “Castelo” poderia ser uma coisa extremamente rica, muito instrutiva, podendo trabalhar esse lado criativo. Eu não tenho a menor vontade ou sedução para ir à Disneylândia, é um universo muito óbvio, não tem a possibilidade de se interagir de uma forma mais criativa, mas há um nível de qualidade ali. Mesmo a possibilidade de uma sequência do “Castelo”, isso nunca foi feito. Já pensei na continuidade com algo do tipo “Novas Aventuras do Nino”, seria uma coisa mais para adolescentes, com eles enfrentando dilemas do mundo real. Mas a Cultura virou um instrumento de Estado, eu diria que ela se descaracterizou do que era. Essa descaracterização começa com a saída do Muylaert, vai sendo um processo gradativo… é triste ver isso.
E o que você acha da programação infantil hoje?
Ela não existe. Há um monte de desenho enlatado, absolutamente circunstancial, totalmente voltada para uma coisa mais consumista, não há uma preocupação de fazer um trabalho para a infância. Um dos temas que a gente desenvolveu no Ministério era justamente o da cultura para a infância. A gente não fala mais cultura da criança, cultura infantil. A gente fala de cultura para a infância, ou seja, de estimular processos na criança. O mais lindo no “Castelo” era que a criança não ficava submetida a ele, ela interagia. Isso é o que falta na programação infantil na televisão brasileira. É necessária uma reformulação para que ela volte a ter um papel educador mesmo, fazer essa ponte entre cultura e educação para que crianças e adolescentes tenham uma programação de qualidade. Está dentro desse horizonte.
Você disse que o “Castelo” é atemporal. O que você mudaria nele hoje?
Acho que dentro da proposta dele, ele foi completo. Hoje você pode ter uma visão diferente, mas aí seria outro “Castelo”. Na época, do jeito que ele foi concebido, ele foi muito além do que a gente poderia imaginar.
E ele consegue ser exibido para as crianças de hoje?
As crianças continuam seduzidas pelo “Castelo”. Podemos até pensar no aspecto tecnológico, mas do jeito que ele está concebido, a imaginação da criança é absolutamente contemplada. Ele ainda seduz, porque eu vejo crianças de dois, três anos de idade assistindo e elas ficam encantadas.
Vocês acharam que ia ter tanto sucesso, depois de 20 anos, estamos falando desse projeto ainda?
Quando eu aceitei, achei que ia ser uma grande oportunidade de se fazer uma coisa muito criativa, mas tudo dependia de como a gente fosse fazer. Acho que foi muito além do que imaginamos e a permanência dele mostra isso. Mesmo “Vila Sésamo”, mesmo o “Sítio do Pica-pau Amarelo”, não tem nada que se pareça com o “Castelo”. Ali se criou uma dramaturgia onde houve uma série de contribuições, foi muita gente contribuindo ali. A ideia original foi desenvolvida pelo Cao, aí veio o Flávio de Souza com o texto, vieram os atores com suas contribuições, todo pessoal de criação, então foi um trabalho realmente coletivo… e como eu disse, a obra de arte só existe com o público. Há uma proposta, e ela se concretiza a partir dessa somatória. É a magia de estar com o público no processo criativo, da forma como ele a recebe. Uma obra de arte, no seu sentido mais completo, acontece quando ela começa a dialogar, a criar uma relação com quem ela se dirige. E é um processo de transformação, nunca é a mesma coisa, nunca se repete. O tempo inteiro, ela está em sinergia. Você vê a Monalisa, do Da Vinci, ela tem séculos mas segue sendo vista como se fosse a primeira vez. Tem o brilho da criação, e acho que o “Castelo” tem um pouco desse aspecto. Ele foi um rio que passou em minha vida, como diria o Paulinho da Viola, e o meu coração se deixou levar.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista, um dos responsáveis pelo Programa de Indie, na Eldorado FM, e autor de “Raios e Trovões – A história do fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”, editado pela Summus Editorial. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
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