por Renan Guerra
O poeta Sérgio Vaz sempre conta (seria recita?) a mesma historinha:
“Na fundação Casa…
– Quem gosta de poesia?
– Ninguém senhor.
Aí recitei “Negro Drama”, dos Racionais.
– Senhor, isso é poesia?
– É.
– Então nóis gosta.
É isso. Todo mundo gosta de poesia. Só não sabe que gosta.”
É dessa premissa que se deve partir para a audição desse novo encontro entre Ná Ozzetti e Zé Miguel Wisnik: “Todo mundo gosta de poesia. Só não sabe que gosta”.
A poesia se torna música nas mãos de Wisnik e ganha voz (e poder) com Ná. Fernando Pessoa, Oswald de Andrade, Cacaso e Paulo Leminski são musicados e assumem um caráter quase pop. Leminski, aliás, assina algumas das canções junto de Wisnik, assim como os poetas Paulo Neves, Alice Ruiz e Marina Wisnik. Depois dessa lista de nomes não há como negar que esse disco se trata de poesia. Se alimenta de poesia. Reverbera poesia. Regurgita poesia.
Esqueça aquele distanciamento que as pessoas têm com a poesia, esqueça as antologias poéticas ou os tratados enunciativos, aqui a poesia é pop, é acessível, se apresenta em sua verve mais natural: cotidiana e intimista. Outro poeta, Luiz Tatit, no texto de apresentação desse disco define claramente que Wisnik “acha sempre a curva ideal para dizer palavras e frases acostumadas com a introspecção”; e é assim que ele define o desafio ao qual Zé se impõe: “como converter poesia em letra, fazendo vibrar aqui e agora, e para todos, a paixão que permanecia em silêncio na mente e no coração do poeta e de seus leitores?”.
Não sabemos seus métodos, nem seus percalços, mas sabemos é que Wisnik tem sucesso nessa labuta de fazer da poesia a trilha sonora para a vida. E Ná Ozzetti se mostra extremamente à vontade em meio a essas canções tão complexas, que soariam herméticas na mão de outras cantoras.
Além disso, tudo, “Ná e Zé” sela uma amizade e parceria de 30 anos dos dois. Ná canta as canções de Zé desde que se entende como cantora. Seus discos vira e mexe traziam faixas assinadas por ele. Os discos dele, por outro lado, sempre traziam a voz de Ná, seja como solista em algumas faixas ou como segunda voz. “Ná e Zé”, então, serve como um belo resumo dessa amizade.
São 14 faixas disponibilizadas gratuitamente (baixe em www.naeze.com.br) que percorrem desde os primórdios da parceira até composições bem recentes, provando a relevância de ambos para o atual cenário musical nacional. Acompanhados de grandes músicos como Guilherme Kastrup, Letieres Leite, Marcelo Jeneci, Guilherme Held, além de uma participação especial de Arnaldo Antunes (na enigmática “Noturno do Mangue”), Ná e Zé constroem um disco que se faz grande em quesitos técnicos, com arranjos delicados e intensos, preparando a cama para suas delicadas vozes se encontrarem.
Um disco belo de dois grandes artistas que, infelizmente, seguem jogando “pérolas aos poucos” (como dizia a faixa do próprio Wisnik). Ambos mereciam mais reconhecimento do público, uma vez que sua música tem um grande potencial comercial, não se fechando em si mesma.
Positivamente, 2015 é um ano maravilhoso para Ná, que também lançou o poderoso disco “Thiago França” em companhia do Passo Torto (também liberado para download gratuito). Quem sabe este se torne o ano em que um público maior reconhecerá sua importância musical (que já deveria ser reconhecida desde os tempos de Grupo Rumo). Ainda há tempo. Que tal começar com “Ná e Zé”?
– Renan Guerra é jornalista na Revista Tudo & Etc e colabora na You! Me! Dancing!