Literatura: Barba Ensopada de Sangue

“Barba Ensopada de Sangue”, de Daniel Galera
por André Alvarez

Tolstói teria afirmado certa vez que “toda grande literatura é uma destas duas histórias: um homem que parte numa viagem, ou um forasteiro que chega a uma cidade.”

Daniel Galera é um escritor ambicioso e portanto sempre mira na grande literatura. Não se fez de rogado e seguiu não uma, mas as duas sugestões do velho mestre russo. “Barba Ensopada de Sangue” é um pouco daquelas duas histórias.

O homem que parte numa viagem é o “nadador”: um professor de Educação Física, de quem não sabemos o nome, que após o suicídio do pai abandona sua cidade, seus amigos e família e sai numa jornada em busca de coisas incertas – isolamento, reflexão, luto, autoconhecimento – e também de um objetivo mais claro: desvendar uma lenda de família. Seu avô, havia lhe contado seu pai pouco antes de morrer, fora morto em circunstâncias estranhas, quarenta anos antes, numa vila de pescadores no litoral de Santa Catarina.

Garopaba é a cidade que recebe o forasteiro. A antiga vila de pescadores, agora transformada num movimentado balneário, destino de surfistas, hippies e famílias em férias de verão, é praticamente um personagem do romance. Descrita com objetividade e detalhismo incomum na literatura brasileira recente (que parece sempre preferir criar ou generalizar lugares e referências), o local revela uma personalidade inusitada, dividida entre a euforia da alta-temporada e a grande sombra imposta pelos longos meses de frio e inatividade.

O forasteiro chega após o final do verão e sua recepção se mostra pouco suave. O avô do rapaz parece não haver deixado boas lembranças por ali e falar sobre sua morte, mesmo após tanto tempo, logo se revela um assunto proibido entre os nativos.

Para temperar a história (uma muleta narrativa, diriam os maldosos) o “nadador” possui uma doença neurológica que o impede de memorizar rostos. Sua cegueira facial torna difícil reconhecer qualquer pessoa logo “de cara” (com o perdão do trocadilho). Sua deficiência o obrigou a desenvolver habilidades alternativas desde a infância: dos familiares, carrega fotos etiquetadas para se lembrar de seus rostos; dos novos conhecidos, sempre escaneia todo e qualquer detalhe que possa servir para identificar o sujeito futuramente.

Uma cidade inóspita, um forasteiro com limitações naturais de adaptação, histórias sinistras do passado sendo desenterradas. Está construída a tensão do enredo.

Galera é um narrador habilidoso e, a partir daí, consegue criar um clima de apreensão controlada e crescente. O ritmo é lento, num passo a passo sem pressa (como diria Gonçalo M. Tavares na contracapa do livro) rumo às possibilidades de desfecho. A prosa coloquial e o detalhismo descritivo caracterizam o próprio protagonista e, ao mesmo tempo, constroem a sensação do ambiente. O discurso indireto livre, que funde a terceira pessoa ao foco e à mente do protagonista, também contribui para isso. O narrador-protagonista navega pela cidade e pela natureza ao redor, atento a fatos e coisas que nem sempre serão essenciais ao desenvolvimento do enredo. Os personagens secundários tem importâncias diversas, suas tramas por vezes não se concluem, entram e saem da trajetória do “nadador” com impactos relativos. Mas a vida é assim, cheia de déficits de atenção e contornos de caminhos, e no final talvez seja essa aleatoriedade que dê o colorido e a verdade de uma história.

Essas digressões narrativas remetem logo a uma das influências explícitas do autor: Galera é tradutor e entusiasta de David Foster Wallace, um prodígio na arte de esmiuçar a realidade às partículas mais insólitas. Isso fica ainda mais evidente quando Galera se utiliza das notas de rodapé, outro artifício característico de Wallace, para dar voz a outros personagens do livro. Um recurso interessante e que funcionou muito bem. No mais, é bastante positivo ver um autor brasileiro absorvendo influências tão contemporâneas, escapando da economia narrativa e fugindo da dualidade prosa seca/prosa poética que se vê tradicionalmente na nossa ficção.

Se foi feliz no uso das digressões narrativas e descritivas, o autor não encontrou a fórmula certa para inserir suas reflexões e opiniões na voz dos personagens. Dissertar sobre certos assuntos de forma mais elaborada era certamente um desafio sem ter em mãos um narrador onisciente e desapegado. As divagações de Galera são sempre interessantes, mas colocadas nas bocas de alguns personagens acabaram soando despropositadas.

Temáticas comuns ao autor também se confirmam em “Barba Ensopada de Sangue”. Galera parece sempre interessado no embate natureza versus civilização, na busca pela verdade mais primitiva e essencial das motivações humanas, no quanto nosso livre-arbítrio é condicionado pelo ambiente e por predestinações auto-impostas. Ao mesmo tempo estão ali também provocações ao racionalismo tacanho do bem pensar contemporâneo, através de referências a sonhos premonitórios, consciências coletivas, lendas que se concretizam. O mistério nem sempre se explica em Garopaba.

No final, a saga do “nadador” em busca do avô ganha traços míticos. Quem persegue a lenda acaba se somando a ela. Ecos de Faulkner e Conrad não são coisas descabidas aqui. Rumo ao coração das trevas, o protagonista retorna aos seus próprios medos e mistérios. Ir à forra com o passado do avô se transforma em enfrentar seu próprio rancor e escolher seu próprio destino. As páginas finais mesclam momentos de contemplação e mergulho na natureza com cenas de ação e violência purificadora. Enfim faz-se juz ao título e ao sensacional prefácio. E mais que isso não se pode dizer para não estragar surpresas.

Em entrevista ao jornal O Globo, Daniel Galera afirma que, do ponto de vista da linguagem, “Barba Ensopada de Sangue” é seu livro mais pessoal, onde pôde utilizar sua voz natural. Em contraponto, cita a experiência radical de “Cordilheira”, seu último romance, quando criou uma protagonista feminina.

De certa forma, Galera jogou o jogo em casa. Assim como seu protagonista, apesar de ter nascido em São Paulo, Galera cresceu em Porto Alegre, gosta de nadar, ouviu a lenda do gaúcho assassinado da boca do próprio pai e também se meteu a ser forasteiro em Garopaba numa temporada de mais de um ano. No entanto, ou até por isso mesmo, Galera mirou alto e atingiu um resultado muito feliz com seu novo romance. “Barba Ensopada de Sangue” é daqueles grandes livros que se tornam mais interessantes na medida em que mais se reflete sobre eles.

– André Alvarez (siga @drexalvarez) é colaborador de primeira hora do Scream & Yell e assina o blog Cartas de Maracangalha

Leia também:
– “Mãos de Cavalo”, de Daniel Galera, por Moreno Osório e André Alvarez (aqui)
– Daniel Galera fala sobre “Barba Ensopada de Sangue” para O Globo (aqui)
– Leia as 35 primeiras páginas de “Barba Ensopada de Sangue” em PDF (aqui)

7 thoughts on “Literatura: Barba Ensopada de Sangue

  1. Galera é para mim (e ainda bem para muita gente) o melhor escritor “novo” que o Brasil tem e estou ansiosissimo pra ler este, em todos outros ele acertou em cheio e só melhora a cada página.
    Só pra deixar claro, o Galera na verdade nasceu em São Paulo e não no RS, ele veio pra cá ainda guri e este detalhe não estragou o texto, muito bom o texto.

  2. Oi Arlen,
    Rapaz, mas essa coisa de gaúcho ou paulista neste caso é uma tecnicidade né?
    Fico feliz que tenha gostado do texto. E não deixe de ler o livro, vai gostar com certeza.

  3. Drex, uma análise muitíssimo bem-feita. Parabéns – e obrigado pela informação do Foster Wallace. Irei atrás da obra do sujeito.

  4. Valeu Leo.
    Uma boa entrada pra obra do D.F.Wallace é a coletânea de ensaios que lançaram um tempinho atrás, “Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo”. Vale muito a pena.

  5. Desculpa usar esse espaço pra isso, mas por que tem essas 3 cores de capa na imagem? Foram lançadas todas?

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