Entrevista por Bruno Capelas
Fotos por Liliane Callegari
Casais que criam e cantam juntos não são exatamente uma novidade na história da música popular. Em uma lista extensa que vem desde o Trio de Ouro de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins até Fleetwood Mac, passando pelos Mutantes, Pato Fu e White Stripes, o duo carioca Letuce, formado por Letícia Novaes e Lucas Vasconcellos, reclama desde fevereiro, com o lançamento de seu segundo disco, “Manja Perene”, um lugar nessa galeria interessante.
Além de ser um casal, Lucas e Letícia também se aproveitam da condição em palco e em disco, criando uma esfera de intimidade e sensualidade muito atraente para o ouvinte. “É maravilhoso ser um casal”, justifica Letícia. “A gente fala muita besteira no palco. Tem vários casais que fazem música juntos e são mais low profile, mas do nosso jeito era assim ou não era. Não tinha como não assumir. Minha vida é aberta, falo de tudo o que eu quero”, explica.
O disco foi gravado com recursos obtidos em um crowdfunding no final do ano passado – a banda pediu R$16 mil, mas acabou arrecadando quase R$19 mil. Para Letícia, a experiência valeu a pena – e ressaltou uma mudança no sistema de relacionamento entre artista e público: “Foi ótimo, deu pra gravar o disco num estúdio foda. Acho que o mais bacana do crowdfunding é que o fã também não se torna bem um fã mais, ele investe, ele colabora. No nosso caso, foram 133 pessoas que pagaram dinheiro por um disco sem ele existir ainda, para compartilhar desse processo”.
Em conversa com Bruno Capelas, o casal confessa uma predileção especial por “músicas de churrascaria e de motel” – uma amostra desse gosto pode ser conferida no EP “Couves”, lançado em 2010, com releituras para petardos de Só Para Contrariar e da cantora nigeriana Sade Adu – e disse que não se vê fazendo música um sem o outro. “Música é algo que eu tenho certeza que vai ser pra sempre na minha vida. Com a Letícia é a mesma coisa. Hoje, essa ideia não bate com a minha vida, então não dá pra responder”, explicou Lucas. Caro leitor, prepare-se para penetrar na intimidade de um casal. Na pauta, além de “Manja Perene”, Letícia e Lucas também falaram sobre intimidade, sexo, Twitter e cantar em outras línguas.Com você, Letuce.
Pergunta meio Marília Gabriela: quem é Letuce?
Letícia: Era um apelido meu. Na verdade, era o nome do meu fotolog, onde eu colocava muita poesia, textos meus, e fotos loucas. Nosso primeiro contato foi pelo fotolog.
Lucas: A gente era vintage na internet… (ri)
Letícia: As pessoas me chamavam de Letuce. Quando eu e o Lucas nos apaixonamos, já sabíamos que os dois especulavam sobre o mundo da música. Quer dizer… eu especulava, ele tinha uma carreira, já era um profissional. Foi uma coisa meio natural chamar esse projeto de Letuce: era meu apelido, e já era um nome que tinha força.
Lucas: Todo mundo que conhecia a Letícia chamava ela de Letuce.
Letícia: Era um apelido mesmo. O Lucas escrevia assim nos e-mails que me mandava: “Oi, Letuce”. Depois que a gente chamou a banda de Letuce ele parou. Mas acho que era isso, apesar dessa desculpa ser totalmente literária… faz um tempo que você falou uma coisa bonita…
Lucas: Mais filosoficamente, acho que esse projeto é o diário da Letícia que caiu na minha vida com a música, no meu caldeirão de coisas. As composições são assim também.
Vocês são um casal antes de ser uma banda?
Lucas: Somos, teoricamente, mas foi algo quase simultâneo.
Letícia: Como eu sabia que ele pirava com música, foi algo espontâneo.
Lucas: Se você considerar que ter uma banda é compor uma música juntos, sem fazer shows, mas pensar que um dia você pode vir a fazê-los, então acho que a gente foi uma banda primeiro. Uma hora a gente percebeu que a gente estava apaixonado e assumiu, e uma hora a gente percebeu que tinha vinte músicas (risos).
Isso foi quando?
Letícia: Isso tem cinco verões… no final de 2007, começo de 2008.
Vocês, além de ser um casal, também funcionam como um casal. Pelo menos em disco…
Letícia: A gente funciona, mas também briga muito…
Lucas: Por mais que a gente tenha o mesmo trabalho e sinta um orgulho do outro, rola também muita tensão pela coisa de ser aprovado pelo outro, de fazer que o outro goste das coisas.
Letícia: Eu sou capricorniana, ele é taurino…
Lucas: Quando o show dá certo, a música ficou boa, a produção também, é sensacional ver que foi com a minha mulher que isso tudo aconteceu. Vai voltar pra minha casa tudo junto, e é bonito. Mas quando estamos criando alguma coisa é sempre difícil. Por outro lado, como nos conhecemos há mais tempo, gongar o outro já é mais fácil.
Letícia: No começo é diferente, né? Fica aquela coisa de você ficar fazendo mise-en-scène com a pessoa: “ah, gostei, mas podia ser melhor aqui, sabe?”.
Lucas: É. Hoje, quando um dos dois não gosta, às vezes nem precisa explicar o porquê.
Letícia: Acho que a parte mais chata de lidar é a questão burocrática mesmo. O dia-a-dia de e-mails, shows, produção, de ter cuidados…
Lucas: Não é o nosso métier, não tem muito a ver com criatividade, tem mais a ver com logística…
Letícia: Mas ao mesmo tempo, também quero saber de tudo. Imagina: não dá pra você ser uma diva, ficar lá rindo e pensando na vida. Esse lugar não existe mais. O próprio artista, mesmo tendo seus parceiros, produtores e assessores, precisa saber do que está acontecendo para sobreviver.
Lucas: E não é sobreviver apenas em termos de dinheiro, é sobreviver em termos de poder ser interessante ainda. No mundo de hoje, você não pode fingir que você é inacessível. Não gostamos de fazer esse jogo, que é mais uma emulação de “ah, eu tenho compromisso demais, não posso nem responder esse e-mail, faço mil coisas”. Na maioria das vezes nem é: a pessoa quer parecer ocupada, dá só uma sumida pra fingir, mas que na real está vendo o assessor atender o telefone e ver ele acertando os detalhes, porque acha que isso vende uma imagem pras pessoas.
E em palco, como é ser um casal?
Letícia: É ótimo. É maravilhoso porque ele me dá toda a segurança que eu preciso. Tenho um cara do meu lado que é talentoso, que me dá segurança, que toca fodasticamente bem. Ele cria todo o espaço pra que eu me encontre, pra que eu me situe enquanto cantora. Nem sei se sou tão cantora assim. Nunca estudei música, ainda estou aprendendo bastante. Então o fato dele ser fodão me ajuda muito.
Lucas: Obrigado (ri).
Letícia: Porque está tudo pronto. É um conforto. É muito bom. A gente fala muita besteira no palco. E por quê não? Tem vários casais que fazem música juntos, que são mais low profile, mas do nosso jeito era assim ou não era, porque só tinha esse jeito. Não tinha como não assumir que a gente é um casal, não falar da nossa vida pessoal em palco, porque eu não sou assim na vida. Minha vida é aberta. Falo de tudo o que eu quero.
É uma coisa que se percebe pelo seu Twitter…
Letícia: É. Claro que de vez em quando você tem de criar um tipo de máscara social, se não você fica maluca também. Imagina, um monte de gente te elogiando depois do show. Tem que saber segurar a onda. Mas tem um lugar da espontaneidade que me agrada muito. Eu nunca poderia ser uma gatinha mistério. Não nasci pra isso, não tenho essa vocação, pra ser fatal ou nada do gênero. Sou mais realmente mais palhaça, mais espontânea.
Lucas: Palhaça?
Letícia: É. Mas também inclui aquele significado da palhaça meio triste. Eu sou meio triste, às vezes. Palhaço dá medo, eu dou medo. Talvez eu devesse ter feito um clown na minha carreira, ficou faltando essa matéria.
O disco novo de vocês, “Manja Perene”, tem uma esfera de intimidade muito bacana. Por que isso? Tem a ver com a maneira que vocês gravaram?
Letícia: Não gravamos em casa, o que deixaria o disco bem íntimo. Com o crowdfunding, que foi ótimo, deu pra gravar num estúdio foda. Mas gravar num estúdio foda às vezes tem o problema de você fazer um disco gelado, distante, que não tem tanto a ver com o nosso som quente, próximo.
Lucas: Legal você falar que o disco é próximo. Foi uma coisa meio projetada pela produção. “Pô, vamos gravar um disco num estúdio bom, mas que se pareça com o clima do show”.
O disco tem uma coisa dos cacos de vocês falando, cantando…
Letícia: Quando a gente estava fechando o disco, o Bernardo, que é o dono do nosso selo, mostrou pra gente algumas das conversas que a gente tinha tido no estúdio. Nem me lembrava delas, porque foram quinhentas mil conversas. A que acabou entrando no disco foi a que mais nos surpreendeu porque pegou um momento natural, do pagodinho do Exaltasamba… “deixa acontecer naturalmente…” (cantarola). Deu uma aquecida no clima ali, e acho que as pessoas sentem isso.
Mas o fato de colocar isso no disco não deixa essa intimidade meio proposital?
Lucas: Deixa, porque foi o que a gente quis mostrar. Um Big Brother de uma sessão de gravação. O disco não tem nem 0,0001% do que aconteceu, mas a gente queria aquela atmosfera. Fizemos dez takes de cada música. Falamos quilômetros de merdas ali. Acabamos pegando um take de cada música e um pedacinho do que era divertido.
Letícia: Tem muita gente que até tem noção de como é uma situação de estúdio. Mas também tem gente que é fã e que não sabe como é essa rotina.
Lucas: Estávamos conversando com uns amigos da Letícia sobre o fato da gente explorar a situação da gente ser casado, de ter uma rotina, uma vida em comum e perguntamos a eles o que eles achariam se a gente tirasse esse elemento do trabalho. Eles responderam: “Imagina, mas isso é indissociável de vocês, mesmo pra quem não conhece vocês pessoalmente”. Então se fazemos uma música sem essa intimidade é um corte meio fora da nossa natureza.
O disco também tem uma pegada bem sexy, muitas músicas falam de sutiã, de calcinha, de sexo.
Lucas: Algumas pessoas acharam pornográfico.
Letícia: Um crítico chegou a dizer que a gente tinha usado palavras “despudoradas”, mas ele tem um coração de 130 anos…
Mas como vocês encaram essa fronteira entre o sensual e o pornô?
Lucas: É parte da nossa intimidade fazer sexo e gostar disso. O disco tem esse lado.
Letícia: Assim como nós somos um casal que toca muito violão, nós também fazemos muito sexo. Somos casados, por que isso também não pode ser um ingrediente da nossa música? Acho a palavra “bacurinha” por si só uma poesia. Que palavra mastigável, deliciosa, sonora… eu falo essa palavra, no Rio dos anos 80 e 90 falava-se muito em bacurinha.
Lucas: O Jorge Mautner fala uma coisa incrível sobre isso. Ele fala que quando você pensa, pensa aquilo é que é a verdade. A primeira coisa é a verdade, o resto ficou no funil e se você tampar aquilo, você vai criar um câncer de emoções que não foram desalojadas. Temos a liberdade de falar do que a gente quiser. Se eu quiser falar de sacanagem, tudo bem.
Letícia: É melhor eu ter feito uma música que eu falo “cucurucu” e “bacurinha” do que não ter feito.
Lucas: Se quiserem achar pornográfico também é ótimo…
O que mudou do primeiro disco pro EP que vocês lançaram em 2010 pra esse disco?
Letícia: No primeiro disco, nós éramos desconhecidos. As pessoas diziam: “Mas quem é Letícia, da Tijuca?”.
Lucas: Era um primeiro disco bem autoral.
Letícia: Mas tinha duas releituras: uma reinterpretação em francês de “Caso Sério”, da Rita Lee, porque a minha mãe é professora de francês, e achei uma homenagem bonita que eu tinha de fazer pras duas; e a Marina Lima, porque eu a amo, e essa música “Acontecimentos” tem uma importância enorme na nossa história… Já a história do EP “Couves” é um pouco diferente. Na noite em que nos conhecemos, tocamos violão até às sete da manhã. Fiquei impressionada porque ele sabia todos os pagodes dos anos 90 – e ele ficou impressionado porque eu sabia todas as letras. Sou tijucana, e o pagode era muito forte na Tijuca. Isso é uma coisa que a gente fez porque faz parte da nossa vida. Não era pra fazer tipo, pra causar, para parecer diferente. Depois do lançamento do primeiro disco, fizemos uma temporada de shows no Rio, num lugar chamado Cinemathèque, que chamava “Churrasquinho Sunset”. A ideia era que as pessoas fossem pro show depois da praia, tinha churrasquinho durante o show, e só tocávamos música de churrascaria.
Mas o que é música de churrascaria?
Lucas: Ah, pagode, música que tocava no rádio nos anos 90.
Letícia: Mas a maioria era pagode. Tinha um ou outro samba, música de motel, Sade, essas coisas… Mas não eram exatamente covers, eram releituras… E as pessoas gostavam, e falavam “Poxa, mas eu quero ouvir a versão de vocês para essa música do Raça Negra, não a original…”, e aí fizemos o EP, mas não lançou fisicamente. No EP tem uma inédita nossa, que é “Baliza”, que aproveitamos pra gravar junto.
Bacana você ter falado das releituras. Quando ouvi o EP, pensei: “tá, tem uma versão de Sade, outra de uma música que eu sempre ouço, mas não sei quem canta [“You Gotta Be”] e três músicas originais deles”. Quem não conhece as gravações originais pode pensar muito bem que as músicas do EP são de vocês, como “O Que Se Chama Amor”, por exemplo…
Lucas: Meu sonho era ter feito uma letra que nem essa…
Eu só fui descobrir quando entrevistei o Giancarlo Rufatto, e ele comentou de vocês quando falou da proposta que ele tinha ao fazer covers.
Letícia: Ele também tem essa pegada… Tem uma cover dele maravilhosa, com um violãozão gostoso… (pensa por um tempo…) É Roxette! Lembrei! (cantarola “It must have been love”).
E a música de motel, aparece de onde?
Letícia: Música de motel é Sade. Sempre pensei: “Nossa, Sade, baita mulherão, com aquela voz” (cantarola “Smooth Operator”). Fomos ver o show dela no Rio, ano passado. Era meio cafona, mas sabe aquele cafona maravilhoso?
Lucas: Caíram umas cortinas umas cinco vezes durante o show…
Letícia: Mas ela fazia umas coisas que ninguém faz mais, com arranjo de big band e tudo mais. Dá pra ver que os músicos são amigos, tocam juntos há 15 anos, eles eram completamente entrosados. Foda. Mas acho que a música de motel é porque íamos muito pra motel. Eu ainda morava com os meus pais, a gente ia pra lá ouvindo rádio.
Lucas: Gosto mesmo de ouvir rádio.
E vocês ouvem rádio?
Lucas: Toda vez que a gente sai de São Paulo e do Rio, temos que colocar na rádio local.
E o que vocês destacam do que andaram ouvindo nas rádios?
Lucas: Na última viagem que fizemos para a Bahia, com o Lucas Santanna, o taxista colocou no rádio um cara sensacional chamado Augusto Calheiros. Deu pra ouvir o disco inteiro desse cara, que nunca chegou a sair direito por aqui. Ele era um dos mil “Roberto Carlos” que aconteceram. Todo Estado queria ter o seu Roberto Carlos e não podia ter, então foram criando genéricos de Roberto Carlos, e esse cara é um deles. Descubro muito pouca música, prefiro ouvir música que chega até mim.
Letícia: Normalmente eu que mando música pra ele, ou amigos…
Lucas: Fico vulnerável à música, mas não sou a pessoa que vai atrás dela, que fica buscando aquele disco raríssimo, absolutamente não sou. Gosto de estar sujeito às músicas que acontecem. A Letícia é mais pesquisadora.
Letícia: Desde que a gente se conhece, todo e-mail que eu mando pra ele tem uma música junto.
Como foi fazer o crowdfunding? Demorou pra acontecer? Vocês ficaram com medo de não conseguir?
Letícia: A ideia foi do nosso selo, que é a Bolacha Discos. Eles falaram que lá fora essa ideia andava rolando, e pensamos em fazer aqui. Fiquei com o maior cagaço, achei que não ia dar certo. Mas então me convenceram, e depois que me convenceram dei a maior força. Nos primeiros dias rola uma euforia. Depois, ficou num hiato. Nessa época, eu tinha certeza que ia dar merda, mas depois acabou dando certo. Lembro do dia que a gente fechou, parecia final de Copa do Mundo quando liguei pro Lucas.
Qual foi o valor?
Letícia: Pedimos R$16 mil, mas conseguimos arrecadar R$19 mil. Deu 20% a mais.
Lembro que tinham algumas propostas do tipo… “pague por um jantar na sua casa com a banda”. Rolou isso?
Letícia: Um grupo de fãs que são muito queridos comprou o jantar, que foi na casa de um deles. Cozinhamos, brindamos, bebemos juntos…
O que vocês cozinharam?
Letícia: Macarrão com shitake e camarão.
E como foi essa experiência de “jantar com o fã”? Tem aqueles fãs que você até conhece, de conversar depois do show, mas não é aquela relação de proximidade, de se passar muito tempo junto…
Letícia: Com esse fã, eu já tinha conversado algumas vezes depois do show, tinha trocado uns twits, então sabia alguma coisa da vida dele, mas nada demais. Mas conversar, ficar bêbado junto de alguém é uma coisa muito íntima… Você se expõe, e foda-se, é maravilhoso. Foi bem legal, até pra eles não ficarem achando, “ah, artista é diferente…”.
Isso também faz parte do artista que não quer ficar lá feito uma diva…
Letícia: Já disse, não sou gatinha mistério, não tenho talento pra esse tipo de coisa. Fizemos também um piquenique. Ainda não rolou, mas vai rolar. Acho que o mais bacana do crowdfunding é que o fã também não se torna bem um fã mais, ele investe, ele colabora. Não é aquela relação clássica. Foram 133 pessoas, que juntaram um dinheiro e queriam um disco. É uma relação artista-público, mas não na relação de fanatismo da palavra. São pessoas interessadas que pagam por um disco sem ele existir, que pagam por um jantar para compartilhar desse processo. A conversa acaba ganhando um tom de entrevista, perguntam bastante sobre a gente. A Lulina tá fazendo uma parada chamada Minimecenas, é mais uma alternativa interessante.
Mas teve algum patrocínio de empresas?
Letícia: A Cantão, que é uma loja de roupas femininas, e a Oi. E vendemos também um pocket show para o Multishow. Eles filmaram e vão transmitir no canal HD. Mas não é com qualquer empresa que eu faria: já tenho uma história antiga com a Cantão, já fiz show pra eles, é uma loja bacana. Não era uma coisa “só queremos colocar a marca aí”. Assim como o fã não é fã, o patrocinador também deixa um pouco de ser um patrocinador. Ele vira um apoiador.
E como é cantar em inglês e em francês – a releitura de “Caso Sério”, da Rita Lee, que virou “Sérieuse Affair”?
Letícia: Eu adoro. Minha mãe é professora de línguas, e ela sempre me estimulou a falar em francês, em inglês, em espanhol. Ela me levava para ver filmes franceses, (e espanhóis, para ver) Almodóvar. Lembro de ler uma minibiografia do Elvis em inglês. Minha mãe já pensava que o mundo ia ser globalizado e que pessoas que falassem outras línguas iam se dar bem. Acho muito legal você ir pra França e não falar inglês, mas falar francês mesmo. Cantar em outra língua é uma possibilidade de atingir mais pessoas, mas também não é só isso. Dentro de mim, às vezes penso em francês ou em inglês, por exemplo. E muitas vezes no ambiente familiar eu falo em outras línguas – meu irmão mora na Inglaterra, minha sobrinha tem três anos e eu falo em inglês com ela. É natural…
Já teve alguma resposta de fãs do exterior?
Letícia: Hoje mesmo uma menina da Itália me mandou um e-mail em inglês – eu não falo italiano, e acho que ela não fala português – falando para saber mais da banda. Sei que a gente tem fãs em Portugal – parece que estavam tentando organizar da gente ir para lá – e na Argentina também. Até demos entrevistas para uma revista e vários blogs de música Hermanos.
Isso que você falou que vai contra aquele papo de “ah, estou cantando em inglês e ninguém tá me entendendo”. Tem o outro lado da moeda, de poder expandir os horizontes. Rola um preconceito por cantar em outras línguas?
Letícia: Rola. Muita gente comenta. Mas não vou conseguir fugir disso – é algo meu, cresci com isso. Faz parte de mim, não quero deixar isso de lado. Minha casa era muito diferente – minha mãe sempre deixava recadinhos na geladeira em francês, avisando se tinha comida pro jantar, ou não sei o quê. Ela faz inglês até hoje – não quer perder a prática com a língua se precisar viajar. Meu pai, por sua vez, só fala “beer”, “toilet”, o que ele acha necessário. Viajar é muito bom, saber uma língua pra poder se expressar é melhor ainda.
Outra experiência tua é ter feito teatro. Como isso influi na artista que você é? Tem até uma música que você canta algo sobre isso, não tem?
Letícia: “Sempre Tive Perna”. Eu falo: “não tenho ouvido pra afinação/eu estudei Teatro”. É claro que estou melhorando bastante a cada dia, porque o Lucas me exige muito, com voz, com postura. Ele me põe pra estudar muito. Se eu ouvir a primeira gravação que eu fiz, de 2008, eu arranho a minha cara. O Antonio Midani, engenheiro de som do nosso disco, foi ver um show agora e me disse ao final: “Você tá cantando muito”. Isso pra mim valeu a vida, porque ele foi a pessoa que mais deve ter suado para corrigir os meus erros na gravação. Ele me abraçou e me disse aquilo, e eu respeitei aquele momento.
Quanto tempo você fez teatro?
Letícia: Me formei na CAL (Casa de Artes de Laranjeiras), que é o curso de teatro mais famoso do Rio, junto com o Tablado. Engraçado: a primeira coisa que eu fiz no curso foi cantar. A primeira aula, do primeiro dia, era Música. Cheguei atrasada, porque eu morava longe, e o professor me escolheu pra cantar uma música na hora. Pensei comigo: “sou tímida, mas a timidez também me dá uma loucura… é melhor eu gritar”. Então cantei “Mercedes Benz”, da Janis Joplin, com aquele vozeirão de “Oh Lord…”. Os meus amigos que ficaram daquela época sempre comentam dessa aula. É muito louco. Na CAL, eu compunha muito e tocava violão. Fazia umas músicas mais engraçadinhas, as pessoas gostavam, não tinha tanta melodia. Eram coisas mais faladas, falando mal de homem… Minha primeira música chama “Love Sucks”. Quem diria que eu hoje cantaria músicas de amor? As coisas sempre se misturaram pra mim. Sinto muito prazer em ver uma peça ainda, tem algumas montagens no Rio que me deixam impressionada, com pessoas da minha idade fazendo trabalhos autorais sensacionais. Fico feliz de ter andado e crescido com essas pessoas. Na banda, eu me sinto mais espontânea, porque teatro tem muito a ver com roteiro, acho que eu me sentiria meio presa. Mas com certeza, devo ter aprendido alguma loucura esquizofrênica na CAL. Foram três, quatro anos muito intensos da minha vida. Com certeza algo ficou.
Uma pergunta que é mais séria e meio cabeçuda… queria saber o que você acha da cena carioca. De 2008 até agora, que é quando você esteve inserida nessa cena, como é que você enxerga esse lugar? Ela é ruim, ela existe, ela é boa?
Letícia: Só posso falar das pessoas que conheço e que frequento. Por exemplo: teve uma matéria no Segundo Caderno d’O Globo, que fala de alguns músicos que tocam mais na Lapa. Eles falaram uma frase super polêmica: “entre Rômulo Fróes e Michel Teló, fico com o Michel Teló”. Amo o Rômulo Fróes. Na época dessa matéria, ele escreveu no Facebook dele: “Você sabe que está ficando famoso quando te comparam ao Michel Teló”. Que coisa louca. Eu nem poderia falar sobre esses caras da Lapa. O Rio tem uma segregação forte. Tem a galera do samba, tem a galera do hip hop, tem a galera considerada indie, que é a gente.
Mas vocês trafegam por várias influências…
Letícia: Sim, mas tem a segregação. A galera do samba não vai no meu show. E eu também não vou no show deles, porque não sou tanto de samba. Gosto, já chorei rios num show do Paulinho da Viola, mas não poderia falar pela cena por completo. Mas não acho que o Rio morreu, que ele é o túmulo da música ou do rock. Pelo contrário, sinto cada vez mais nomes fortes acontecendo. Claro que eles ainda não têm incentivo suficiente, ou o status para que tudo isso possa criar público. A gente teve muita sorte quando a gente começou porque o Cinemathèque, uma casa de shows do Rio, deu pra gente uma temporada de um mês. Isso foi determinante: uma galera ia num domingo, e no domingo seguinte levavam seus amigos. E no domingo seguinte esses amigos levavam seus amigos.
Depois de um mês vocês dobraram de público…
Letícia: Foi um momento de sorte ali. Tem vários nomes no Rio que eu adoro, mas não sei se as pessoas conhecem tanto.
Cita alguns deles então.
Letícia: Tem a Ava Rocha, filha do Glauber Rocha, acabou de lançar um disco, “Diurno”. As pessoas não estão falando tanto dele, mas é uma maravilha, belíssimo. Tem o namorado dela, que é o Negro Léo, uma voz maravilhosa. Tem Alice Caymmi, uma menina nova, neta de Dorival Caymmi, que tem um trabalho muito diferente. Ela tem 21 anos e tem uma música só dela, chamada “Revés”. Com 21 anos de idade não conseguiria ter feito aquilo. Tem também uma banda de rock experimental loucão, chama Dorgas, uns meninos pirando, gritando, mandando ver. Tem também Botica, cantor de uma banda chamada Os Outros, que acabou de lançar um projeto solo lindo, dedicado, diferente. São nomes diferentes, que me emocionam, que eu fico com vontade de mostrar pra quem virar pra mim e falar que não tem nada acontecendo no Rio. Tem também todos os outros que já existem há um tempo, como a Nina Becker. Amo a voz dela, “Azul” e “Vermelho” são duas obras-primas. O Do Amor é maravilhoso. E eu preciso falar do Qinho, um cantor amigo nosso, que também é maravilhoso. Dá até nervos de ouvir gente falando assim.
Quais são os próximos planos da Letuce? Dominar o mundo?
Letícia: Queria muito fazer shows no Nordeste… meu avô era pernambucano, passei férias maravilhosas no Recife, sei que temos muitos fãs lá. Quase rolou, mas tem sempre aquele problema da passagem. Estou quase bancando do meu bolso, de tanto que as pessoas pedem para irmos pra lá. Fortaleza e Recife, a gente tá chegando. Aguentem que vai rolar. Os planos não são muito mirabolantes não, é importante um passinho de cada vez. Nordeste ia ser muito importante pra mim.
A música de vocês está muito ligada a vocês serem um casal. Não querendo dar azar no romance, mas vocês se veem algum dia não sendo mais um casal e continuando a fazer música juntos?
Lucas: Eu não gosto de imaginar minha vida sem a Letícia.
Letícia: Eu também não.
Lucas: Música é algo que eu tenho certeza que vai ser pra sempre na minha vida. A música não é uma parte de mim, a música sou eu. Eu não escolho. Com a Letícia é a mesma coisa. Hoje, essa ideia não bate com a minha vida, então não dá pra responder.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista, escreve para o Scream & Yell desde maio de 2010 e assina o blog Pergunte ao Pop.
– Liliane Callegari (@licallegari) é arquiteta e fotógrafa. Site oficial: http://lilianecallegari.com.br/
Leia também:
– Ao vivo em São Paulo: Letuce e Marcelo Jeneci, por Marcelo Costa (aqui)
– Giancarlo Ruffato faz piada sobre o sentimentalismo masculino, por Bruno Capelas (aqui)
há vezes em que você conhece a música de alguém e não tem o mesmo prazer em conhecer a pessoa que a produz; a Letícia e o Lucas, com certeza, não fazem parte dessa lista. o disco é bom, o show é ótimo e os dois são daquelas pessoas com quem valeu a pena ~trabalhar~ (durante a confecção do Jeito Felindie, no caso).
Manja Perene não ficou no top 5 desse ano, mas entraria num top 10.