'O Animal Agonizante', de Philip Roth
por
Jonas Lopes
Gymnopedies
08/07/2006
Philip
Roth chegou em um ponto da carreira em que poderia facilmente
ligar o piloto-automático, lançar livros medianos a cada cinco
ou seis anos e viver do (glorioso) passado enquanto a Academia
Sueca não cria vergonha na cara e o laureia com o Nobel. Não
é o caso; Roth passou a década de 70 e boa parte da de 80 um
tanto fora dos holofotes. Quando parecia que ele nunca voltaria
à forma de O Complexo de Portnoy (1969), ele ressurgiu
com uma seqüência inacreditável de grandes romances (e que ainda
não terminou). Pelo menos duas obras-primas foram lançadas nesse
período, O Teatro de Sabbath (1995) e Pastoral Americana
(1997), além de outros quitutes de primeiro quilate (como A
Marca Humana).
A Companhia das Letras acaba de lançar em edição nacional a novela O Animal Agonizante (127 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto), lançada no exterior em 2001. Antes, portanto, de Complô Contra a América, de 2004, mas que saiu no Brasil ano passado. E vejam que Roth acaba de soltar mais um petardo nos EUA, Everyman. Ele simplesmente não pára. O Animal Agonizante (título tirado de um verso de Yeats) traz de volta David Kepesh, narrador que apareceu duas vezes na carreira de Roth. A primeira na cômica releitura de A Metamorfose, O Seio (1973), em que se vê transformado em um seio enorme, e em O Professor de Desejo (1977).
Kepesh não fica a dever para os outros personagens-símbolo do autor. Se analisarmos o bloco de heróis de Roth como o plantel de uma peça, Mickey Sabbath, o titereiro artrítico, seria o diretor e maestro; Nathan Zuckerman, o principal alter ego do autor, seria o observador postado na ribalta, captando reações e transformando-as em histórias através de seu gênio narrativo; o próprio Philip Roth (personagem de Operação Shylock, Complô Contra a América, etc) seria o contra-regra; e a Alex Portnoy e David Kepesh caberia, um em cada ato, o papel de atuar no palco. Kepesh e Portnoy se parecem muito, por sinal; ambos monologam ante um ouvinte calado (no caso de Portnoy, um psicólogo; no de Kepesh, uma mulher não-identificada). A diferença é a erudição de Kepesh, que o remete aos personagens de Saul Bellow.
E forçando um pouco a barra, é possível dividir os livros de Philip Roth em duas partes: os "sérios" e os eróticos. Os primeiros são aqueles em que ele trabalha com reconstrução histórica de grandes eventos e assuntos, como Vietnam (Pastoral Americana), macartismo (Casei com um Comunista), Segunda Guerra (Complô Contra a América), sionismo (O Avesso da Vida) e aqueles de situações de abismo do protagonista (A Marca Humana). Da segunda categoria fazem parte os romances que trazem um Roth mais cáustico (O Complexo de Portnoy, O Teatro de Sabbath, Lição de Anatomia). É aqui que O Animal Agonizante se encaixa. Nas mãos de um autor qualquer, essas duas categorias se limitariam às suas funções básicas - erotismo e a abertura panorâmica social. Com Roth, no entanto, não há apenas pretos e brancos; as nuances é que dão o tom. Apesar de O Animal Agonizante trazer uma história sobre sexo, lá estão os ensaios sobre a hipocrisia da sociedade norte-americana.
Kepesh é um professor aposentado e atualmente leciona um curso fixo e extracurricular sobre crítica, ao mesmo tempo em que estrela um programa cultural na TV educativa aos domingos, o que faz dele "uma figura razoavelmente conhecida na cidade". Por toda a sua carreira acadêmica, Kepesh se aproveitou do cargo para levar as alunas para a cama ("ora, sou muito vulnerável à beleza feminina"). Ele é um típico produto dos anos 60, e olhe que na época ele já era professor, não mais um jovem. A América naquele período era o Éden; o fruto proibido e desejado pelos Adões e Evas era a liberdade. Liberdade para falar o que queriam, para vestir o que queriam, ouvir o que queriam, votar em quem queriam, liberdade de não ir à guerra, se assim o queriam. Sobretudo, queriam liberdade para fazer sexo como, quando, com quem e quantas vezes desejassem.
É evidente que toda essa liberdade trouxe conseqüências. Kepesh ganhou o ódio eterno do filho Kenny, agora com 42 anos. Para Kenny, o pai é uma piada de mau gosto, um devasso, uma nova versão do pai Karamazov, o culpado da vida desgraçada da sua mãe e do seu próprio fracasso emocional e seu atual adultério. Kepesh também o despreza, por sua vida casta (na verdade hipócrita, já que Kenny também trai a esposa; só não tem a coragem de assumir isso). Kenny espelha o puritanismo dos Estados Unidos no que ele tem de mais nocivo. E Roth não precisa apelar para o panfletarismo simplório de um Michael Moore para dar a sua contribuição. Ele ainda trabalha nesse território como nenhum outro autor vivo, seja em relatos breves como esse, seja nos romances longos, mais comuns em sua 'oeuvre'.
Kepesh também tem o seu quinhão de sofrimento. Em forma de mulher: Consuelo Castillo, uma de suas estudantes, filha de imigrantes cubanos (ricos) e por quem o professor se apaixona, contrariando sua regra pessoal de nunca se comprometer emocionalmente. Consuelo, essa indômita Desdêmona latina de seios perfeitos e pêlos pubianos lisos, torna-o dependente com sua indiferença. Brota o ciúme. E o Iago de Kepesh-Otelo é o próprio Kepesh, de décadas antes. "Como é que sei que um rapaz vai levá-la embora? Porque eu já fui o rapaz que o teria feito (...) Sei do que ele é capaz porque esse rapaz sou eu com vinte e cinco anos, ainda sem mulher e filho".
O que diferencia O Animal Agonizante das centenas de
narrativas sobre homens experientes que se apaixonam loucamente
por mulheres jovens é esse espelho que assoma David Kepesh e
finalmente lhe dá a noção de sua própria mortalidade ("Porque
as garotas - por quanto tempo ainda vou poder?"). Pior, com
a mortalidade dos outros, quando seu melhor amigo morre em conseqüência
de um derrame (seu espasmo final é fino exemplo do humor ácido
de Roth) e Consuelo contrai um câncer de mama e descobre que
um de seus irretocáveis seios será retirado. E agora sua liberdade
defendida por anos, sua posição de evangelista do sexo, está
ameaçada:
"Depois de algum tempo, eu já nem sei mais qual é
o objetivo desse anseio desesperado. Os peitos dela? A alma?
A juventude? A simplicidade mental dela? Talvez seja algo pior
do que isso - talvez agora, que estou chegando perto da morte,
eu esteja secretamente ansiando por não ser livre".
Philip Roth nunca fui um autor otimista, e se o leitor espera do livro final feliz e/ou edificante e epifanias consoladoras, vai se frustrar. Aparentemente, a maior diversão de Roth é jogar seus personagens em caldeirões onde seus posicionamentos morais são colocados em conflito até sobrar apenas o patético. Ainda assim, consegue extrair lirismo desse patético - um lirismo envolto em ferrugem. Ave!
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