'Complô Contra a América',
de Philip Roth
por
Jonas Lopes
Yer Blues
11/11/2005
Não
há território mais fértil para a imaginação do que o "se". Como
tal situação teria se desdobrado se em algum momento do processo
alguém tivesse dito uma frase ao invés de outra. Como um pequeno
detalhe poderia alterar o destino de milhões de pessoas. E é
na ficção, cujo ingrediente principal é a criatividade, que
essas suposições mais podem render situações curiosas e originais.
Agora imagine o que a mente de Philip Roth, de agudeza indiscutível,
seria capaz de fazer partindo da ilimitada premissa do "se".
Complô Contra a América (Companhia das Letras, 482 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto) é resultado desse exercício de suposição. A trama investiga como seria a história dos Estados Unidos se o aviador e herói nacional Charles A. Lindbergh fosse candidato à presidência contra Roosevelt, ganhasse por uma vantagem avassaladora de votos, começasse uma parceria com Adolf Hitler e passasse a perseguir os judeus americanos.
Lindbergh realmente era anti-semita (assim como outro luminar norte-americano, Henry Ford) e admirador do regime nazista - foi condecorado com uma medalha de ouro do governo de Hitler, com quatro suásticas. Quando a Alemanha invadiu a Polônia e deu início à Segunda Guerra Mundial, afirmou que era necessário se defender da "infiltração de sangue inferior".
Sua enorme popularidade levou um senador republicano a sugerir sua candidatura à presidência, algo que Lindbergh não levou a sério. Um episódio sem importância, que Roth expande e desenvolve. Há um apêndice pertinente no final, com mini-biografias de algumas dos personagens verdadeiros que aparecem no livro. Ali dá para perceber bem o que é real e o que é ficção no romance.
Ao invés de partir do prisma mais óbvio, o de Lindbergh, Roth concentra o livro nos efeitos que a eleição do aviador provoca nas pessoas comuns ("A história é tudo que acontece em todos os lugares (...) Até mesmo o que acontece nesta casa com um homem comum - isso vai virar história um dia"). No caso, a família Roth, que mora na Newark que o autor sempre explora. O pequeno Philip, com sete anos quando Lindbergh é eleito, relembra aqueles anos de terror para a sua família. Por sua pouca idade, Philip não entendia boa parte do que acontecia ao seu redor.
É sob esse filtro ingênuo que acompanhamos o contraste entre
os dois personagens mais intrigantes de Complô Contra a América,
Sandy e Alvin. Sandy, irmão de Philip, é pintor talentoso e
adolescente precoce. Passa férias em um programa do governo
em Kentucky e volta como defensor ardoroso de Lindbergh. Arruma
um emprego como porta-voz do programa para enviar crianças judias
ao interior do país, para desespero de seu pai Herman, democrata,
admirador de Roosevelt e ouvinte habitual de Walter Winchell,
radialista que naquela época era ouvido por cinqüenta milhões
de pessoas (e que, no livro, resolve ser candidato à presidência
para impedir a reeleição de Lindbergh).
Alvin é primo do narrador. Órfão e ex-delinqüente juvenil, ele se revolta com a recusa do novo presidente em entrar na guerra contra o Eixo. Alista-se no exército do Canadá e, pouco depois de entrar em combate na Europa, perde uma perna. Volta amargurado e se envolve com a máfia local. Alvin é a imagem da dissolução. O idealista que, frustrado, se entrega ao cinismo e à indiferença.
Roth cria um clima tão paranóico que às vezes ficamos em dúvida sobre se realmente Lindbergh está se preparando para exterminar "os inimigos da América" ou se é apenas mania de perseguição dos judeus. Sim, a família Roth é expulsa de um hotel em Washington. Mas logo na abertura do livro, quando visitam um bairro goy para onde se mudariam caso Herman aceitasse uma promoção no emprego, antes da eleição do aviador, o patriarca se revolta contra homens bebendo chope em um bar, apesar de não terem falado nada. Paranóia. Anti-semitismo, afinal, sempre houve. Lindbergh só catalisou o ódio de quem ainda o reprimia.
O espírito bélico é tão sufocante que as crianças passam os dias brincando de "Eu declaro guerra", um jogo de bola em que o jogador escolhia ser um país e tinha que agarrar a bola arremessada por quem declarasse guerra a ele. O clímax do livro acontece quando Lindbergh desaparece e os anti-semitas (como a Ku Klux Klan) começam a perseguir e matar judeus por todo o país. O desfecho é surpreendente, e deixa em aberto algumas verdades e mentiras, fatos e boatos.
A obra não tem tanto do humor ímpio, cáustico e corrosivo de Complexo de Portnoy, O Seio e Lição de Anatomia. Sua sobriedade sardônica e reconstrução histórica o aproximam mais de Pastoral Americana, e sua capacidade imaginativa de O Avesso da Vida. E ainda está lá a notável habilidade de Roth de tornar cômico um pesadelo e trágico um sonho. Sonho ou pesadelo, Complô Contra a América é aterrador. E plausível: assustadoramente plausível.
Leia também:
"O Complexo de Portnoy", de
Philip Roth , por Jonas Lopes
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