"O Complexo de Portnoy", Philip Roth
por Jonas Lopes
http://www.yerblues.com.br
20/12/2004

Um tratado sobre hipocrisia e um bem humorado retrato de parte da sociedade americana do final da década de 60: isso é O Complexo de Portnoy, livro do norte-americano Philip Roth, lançado originalmente em 1969 e recém-reeditado no Brasil pela Companhia das Letras, em comemoração aos 35 anos de seu lançamento.

O Complexo de Portnoy é o quarto livro de Philip Roth. O primeiro, Goodbye, Columbus, data de 1959. Segundo a epígrafe, complexo de Portnoy é um "distúrbio em que fortes impulsos éticos e anseios sexuais se apresentam em perpétua luta com extremados anseios sexuais, freqüentemente de natureza perversa. Segundo Spielvogel, são abundantes os atos de exibicionismo, voyeurismo, fetichismo, auto-erotismo e coito oral; em conseqüência da 'moralidade' do paciente, entretanto, nem a fantasia nem o ato resultam em genuína satisfação sexual, mas antes em avassaladores sentimentos de culpa e temor de punição".

O livro é um relato de Alexander Portnoy a seu psicanalista (o doutor Spielvogel), narrado freneticamente em forma de fluxos não-lineares de consciência e memória. Alex relembra alguns dos principais episódios de sua vida, e fala quase o tempo todo de sua família e sua vida sexual. Ele teve na mãe o principal elemento de sua formação. Como toda matriarca judia que se preze, Sophie é superprotetora, histérica, exagerada e hipocondríaca. É a cabeça e chefe da casa, controlando cada aspecto da vida de todos na família. O pai de Alex, um acomodado vendedor de seguros que sofre de prisão de ventre, só faz consentir, com quieta frustração de não poder resmungar ou se rebelar contra a sufocante presença da esposa. Está relegado ao segundo posto na família.

Como se a pressão social já não fosse tirana o suficiente, há ainda a pressão familiar, tão opressiva quanto. Seja alguém na vida. Case com uma boa moça - judia, sem dúvida, nada de gentias. Não tenha pensamentos impuros, indignos e selvagens. Sexo? Para a reprodução, e só. Portnoy vive uma relação de amor e ódio com sua família, e ele passa da devoção ao desprezo em poucas linhas.

Alex atravessa a adolescência exercendo sua puberdade com apetite, porém com o pudor e o sentimento de culpa o remoendo por dentro. Masturba-se na cama, no banheiro, no cinema: "não conseguia manter as mãos longe do meu pau quando ele começava a me subir barriga acima". Chega a simular sexo com maçãs furadas e garrafas de leite. A culpa o consome, "sou o Raskolnikov da ejaculação!", afirma, na melhor frase do livro. Mais tarde vem o problema da primeira vez. Na vida adulta, a dificuldade de encontrar uma mulher digna para ser sua esposa. Quando arruma uma namorada linda, é ignorante e analfabeta; quando conhece uma moça inteligente, é ruim de cama ou cristã demais.

Roth, de certa forma, explora alguns sentimentos humanos básicos - sentimentos estes que transformamos em agruras através de tabus sociais. Abordar tópicos como masturbação, virgindade, impotência e atritos religiosos e familiares, pode parecer hoje tão casual quanto chupar um Chicabom ou debater os resultados do futebol. Mas não era em 69, com os Estados Unidos vivendo a efervescência da disputa entre os emergentes hippies e os defensores da moral e dos bons costumes (para maior aprofundamento neste momento histórico, uma pedida é A Mulher do Próximo, de Gay Talese). Ali o buraco era mais embaixo. E de qualquer forma, a coisa também não é bem assim. Estes pontos ainda têm um pouco de tabu, nós é que fingimos que não.

E o atrativo principal de O Complexo de Portnoy é o próprio Philip Roth. Tudo bem, estes temas e questões são tão interessantes e pertinentes que um bom escritor - digo, alguém mortal - poderia fazer bom uso deles. Mas nas mãos do genial Roth, Alex Portnoy adquire uma profundidade psicológica tremenda. O autor usa o humor da melhor forma que se pode fazer, usando a ironia de forma cruel, com sarcasmo picante, como convém a um judeu. Mal comparando, Philip Roth é uma espécie de Woody Allen da literatura - igualmente hilário, e mais profundo. Com o passar dos anos, Roth abandonou um pouco do humor, mas ele ainda está lá, escondido e sagaz em meio ao seu cinismo.

O sucesso de O Complexo de Portnoy alçou Roth às alturas, onde é seu lugar. Não são poucos os que o consideram o principal romancista americano vivo, ao lado de John Updike, Saul Bellow e Gore Vidal. Seu realismo psicológico denso e ardido, sua (quase pós) modernidade lingüística (capaz de render metáforas e simbolismos únicos) fez escola na literatura de língua inglesa e influenciou a geração seguinte de autores. É possível perceber traços de seu estilo até no texto do nosso Rubem Fonseca (isso fica claro no recente Diário de Um Fescenino). E mantém-se ativo: seus trabalhos recentes são tão aclamados quanto Portnoy, vide Operação Shylock (1993), Teatro de Sabbath (1995) e a trilogia americana.

Quando o iminente Nobel de Literatura chegar (o Pullitzer ele já ganhou), O Complexo de Portnoy será o primeiro livro a ser lembrado na obra deste grande e maravilhosamente incômodo escritor.

Daniel Piza, editor executivo e colunista do jornal O Estado de São Paulo, e um dos mais ferrenhos admiradores de Philip Roth no Brasil, aceitou comentar o relançamento de O Complexo de Portnoy:

Muita gente considera Philip Roth o maior romancista americano vivo. Como O Complexo de Portnoy se encaixa dentro de sua grande obra?
Daniel Piza: Ele certamente está entre os grandes escritores vivos, com Saul Bellow, Muriel Spark, Ian McEwan, Amos Oz e Coetzee. O Complexo de Portnoy é a primeira de suas obras-primas, ainda que Goodbye, Columbus, de dez anos antes (1959), já seja um belo livro. São raros os escritores que escreveram mais que uma ou duas obras-primas, e Roth fez isso. Operação Shylock e Teatro de Sabbath são os outros que prefiro, mas O Avesso da Vida e Lição de Anatomia também são de alto nível, além da recente trilogia americana (Pastoral Americana, A Marca Humana e The Plot Against América) e livros pequenos e cheios de picardia como The Breast e The Dying Animal. Sua inteligência contundente, seu humor sardônico e sua imaginação labiríntica formam um estilo estabelecido exatamente a partir de O Complexo de Portnoy. E é nesses momentos mais anárquicos, quando mistura comicidade e angústia, que Roth atinge seu melhor.

O livro está sendo reeditado pela Companhia das Letras. O que há de atual e pertinente em O Complexo de Portnoy trinta e cinco ano depois?
Daniel Piza: O livro conseguiu a raridade de ser sucesso de público e crítica sem ficar datado. Embora o que tenha sido chocante para muita gente na época seja menos hoje, o humor não perdeu nada de sua intensidade. As cenas de sexo, os diálogos, os acontecimentos são descritos de maneira muito crua e engraçada, numa sucessão veloz, e Roth bate forte na hipocrisia americana, no casamento que se quer respeitável e se revela perverso, na mania humana de ornamentar a relação sexual com o glamour do amor... Hoje se fala e se mostra tanto sexo e, apesar disso, as pessoas continuam a sofrer com culpas, com desejos que têm medo de realizar porque não sabem lidar com as emoções. Enquanto houver esse tipo de sofrimento, Roth vai estar atual. Ou seja...

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