"De Moto pela América
do Sul – Diário de Viagem" de Ernesto Che Guevara
por
Drex Alvarez
Blog
27/08/2003
Em
meados do ano passado, quando estava planejando minha viagem a
Machu Picchu, fiquei sabendo que Walter Salles Jr., depois dos
sucessos de Central do Brasil e Abril
Despedaçado, estava em vias de iniciar uma adaptação
para o cinema de um livro escrito por Che Guevara, na verdade
uma espécie de diário das viagens desse ícone
da Revolução Cubana pela América Latina.
Comecei
a correr atrás do tal livro, é claro. Não
que pretendesse também viajar por toda a América
Latina, mas, puxa vida, seria ótimo contar com algumas
dicas e comentários de, nada mais, nada menos, 'el Che'.
A
busca foi, no entanto, mal-sucedida. Eu sabia apenas que o filme
se chamava Diários de Motocicleta, mas não
encontrava nenhum livro com este nome. Até que, numa busca
na internet, no meio de outros tantos livros sobre Che encontrei
o que estava procurando. E então entendi o motivo da minha
confusão: o título correto da edição
em português é De Moto pela América do
Sul – Diário de Viagem. O título do filme, Diários
de Motocicleta, é original da edição
americana do livro (The Motorcycle Diaries). Fica a dica
para quem for procurá-lo. No entanto, nem mesmo esse esclarecimento
pôde me ajudar naquele momento – o livro estava esgotado.
No
fim, mesmo sem ter Che Guevara como guia, a viagem acabou dando
certo. Só mesmo meses mais tarde, mais exatamente no romântico
dia 12 de junho último, pude finalmente ter o livro nas
mãos. Ter uma namorada que não esquece, desta vez,
foi a minha sorte.
Talvez tenha sido melhor assim. Foi muito interessante ler De
Moto pela América Latina depois da viagem e encontrar
ali referências de alguns lugares já visitados. Mas
a viagem do jovem médico Ernesto Guevara foi muito maior
que a minha. Na verdade, Che ainda não era efetivamente
um médico quando iniciou a viagem em 1952. Tinha apenas
23 anos e teve que trancar o último ano da faculdade de
Medicina em Córdoba, Argentina para lançar-se na
estrada com seu amigo biomédico Alberto Granado. Ambos
tinham grande interesse em especializar-se em leprologia e o objetivo
principal deles era, além de mergulhar no continente, conhecer
as condições de tratamento da doença pelos
países da América do Sul. Quem sabe, se tudo desse
certo, chegar até as colônias de leprosos existentes
na Amazônia peruana.
O
título do livro é, na verdade, algo mentiroso. A
dupla utiliza-se da moto de Alberto, carinhosamente batizada de
"La Poderosa", apenas na primeira parte da viagem. Após
atravessarem a Argentina e cruzarem os Andes, a "Poderosa" quebra
irremediavelmente e é abandonada em solo chileno. Como
já carregavam pouco dinheiro, a partir daí a viagem
prossegue de forma ainda mais improvisada: ora caminhando, ora
conseguindo caronas generosas, por vezes subindo em caminhões
pau-de-arara, eventualmente juntando trocados para fazer alguns
trechos em ônibus precários. Sempre contando com
a ajuda e hospitalidade alheia para comer e dormir. E desta maneira
maltrapilha, Ernesto e Alberto atravessam o deserto do Atacama,
passam por Cuzco e Machu Picchu, chegam a Lima, atravessam a Amazônia
Peruana, conhecem finalmente a colônia de leprosos de San
Pablo e finalizam sua viagem entre a Colômbia e Venezuela.
Ao todo, nove meses de viagem.
Toda esta jornada é, sem dúvida, o primeiro atrativo
deste Diário. Entre as divertidas improvisações
e as pequenas aventuras vividas pela dupla, vai-se, literalmente,
descobrindo a América. O segundo e talvez principal atrativo
é poder conhecer essa diversidade do continente americano
justamente pelos olhos de alguém que, como sabemos agora,
terá pela frente um futuro tão impactante. E, aos
poucos, através de suas impressões, considerações
e atitudes, conseguir descobrir quem é aquele jovem estudante
de medicina, e tentar entender como o viajante Ernesto se transformaria
no líder Che Guevara.
Ernesto,
em sua narrativa, traz uma certa inocência, que ora mostra-se
pela espontaneidade das ações, ora transforma-se
num idealismo forte e sonhador. Ele quer viajar para conhecer,
para aprender, para entender. Tem uma enorme fome pelo entendimento.
Sobretudo, carrega dentro de si valores éticos fortes e
orgulhosos. Mas a ética de Ernesto é muito particular
- não é uma moral politicamente correta, nem preocupada
com a ordem das coisas. A viagem é recheada de pequenas
malandragens, daquelas típicas traquinagens dos andarilhos.
A ética de Ernesto é calcada principalmente na lealdade
ao amigo Alberto, na extrema solidariedade, na preocupação
com as condições do próximo, na vontade de
evoluir, no orgulho pelas raízes latino-americanas.
Quem
espera a narrativa de um jovem revolucionário vai com certeza
decepcionar-se. O latente Che ainda não tem muito clara
a sua visão política. Seus valores são fortes,
mas ele ainda não enxerga qual seria a melhor maneira de
colocá-los em prática. Uma coisa, no entanto, fica
surpreendentemente transparente no livro: sem ser arrogante, Ernesto
Guevara demonstra uma autoconfiança extrema. É como
se ele tivesse certeza de que o futuro lhe guardava algo de muito
importante.
Felizmente
o livro não carrega num discurso político maçante.
Che esboça algumas idéias, mas são só
breves observações que acabam servindo para conhecer
suas primeiras e hesitantes idéias revolucionárias.
No mais, o que se percebe é um homem inteligente, sedento
por aprendizado, idealista mas cheio de dúvidas, interessado
e sensível ao ambiente. Além de tudo, a narrativa
é recheada com uma ironia inteligente, um tom leve e bem-humorado.
Sobretudo, percebe-se que Che sabia rir de si mesmo.
Ao
final do livro, após o término das aventuras daquele
pós-adolescente cheio de idéias e de vontade, é
surpreendente pensar que apenas dois anos depois, em 1954, Che
realizaria sua segunda viagem pela América (também
motivo de outro diário, também já publicado)
e finalmente se juntaria ao grupo de Fidel Castro no México.
Passariam então apenas mais outros dois anos de preparativos
para o desembarque do grupo em Cuba em 1956. E o resto já
não é mais diário de viagem, o resto é
História.
É claro que não se pode buscar grande valor literário
nos escritos de Che. Suas pretensões eram outras, sua história
deixou isso claro. Como literatura, De Moto pela América
do Sul tem o mesmo valor artístico que qualquer outro
diário de viagem publicado em algum blog na internet. Mas,
definitivamente, isso não tem a menor importância.
Afinal, quem não gostaria de ler um blog escrito por Ernesto
Che Guevara?
(informações
podem ser conseguidas no site da editora - aqui)
- O Filme -
Após
a repercussão internacional de seus dois últimos
filmes, Walter Salles Jr. estava engatilhado num projeto junto
à Miramax para filmar The Assumption of the Virgin,
com participação da beldade Juliette Binoche. No
entanto, algum desentendimento aconteceu com o estúdio
americano, fazendo com que o diretor brasileiro abandonasse o
barco para dedicar-se à adaptação do Diário
de Viagem de Che Guevara.
The
Motorcycle Diaries tem produção de Robert Redford,
que após crescimento do Festival de Sundance tem se transformado
num mecenas das produções independentes americanas.
As filmagens já foram encerradas, tendo tido locações
no interior da Argentina, no deserto do Atacama no Chile e no
Peru.
Coerentemente,
o filme será todo falado em espanhol. Quem interpreta Che
Guevara é Gael Garcia Bernal, revelação do
cinema mexicano em E
Sua Mãe Também. O lançamento nos
EUA está previsto para o final deste ano.
O
livro é um prato cheio para um roteiro de primeira. Tem
um foco único, é simples, linear e objetivo. Ao
mesmo tempo possui situações tanto hilárias
como dramáticas, suficientes para tecer uma estória
bastante interessante. Isso tudo somado à sensibilidade
e talento de Walter Salles permite que esperemos pelo menos um
ótimo road-movie latino. É inútil dizer que
nunca é bom levantar as expectativas – as minhas já
estão lá no alto.
"De
Moto pela América do Sul – Diário de Viagem"
Trecho 1 - Prefácio
"Esclarecendo as Coisas...
Este não é um conto de aventuras nem tampouco alguma
espécie de “relato cínico”; pelo menos, não
foi escrito para ser assim. É apenas um pedaço de
duas vidas que correram paralelas por algum tempo, com aspirações
em comum e com sonhos parecidos. Durante o transcorrer de nove
meses, um homem pode pensar em muitas coisas, desde o mais alto
conceito filosófico até o desejo mais abjeto por
um prato de sopa – tudo de acordo com o estado de seu estômago.
E se, ao mesmo tempo, esse homem for do tipo aventureiro, ele
poderá viver experiências que talvez interessem às
demais pessoas e seu relato casual se parecerá com este
diário.
Assim, a moeda foi lançada e girou no ar; às vezes
apareciam caras, às vezes coroas. O homem, que é
a medida de todas as coisas, fala através de mim e reconta
por minhas palavras o que meus olhos viram. De dez caras possíveis,
eu talvez só tenha visto uma única coroa, ou vice-versa:
não há desculpa; minha boca fala o que meus olhos
lhe disseram para falar. Teria nossa visão sido estreita
demais, preconceituosa demais ou apressada demais? Teriam nossas
conclusões sido muito rígidas? Talvez, mas é
assim que a máquina de escrever interpreta os impulsos
desbaratados que me fizeram pressionar as teclas, e esses impulsos
fugazes já estão mortos. Além disso, ninguém
pode responder por eles.A pessoa que tomou estas notas morreu
no dia em que pisou novamente o solo argentino. A pessoa que está
agora reorganizando e polindo estas mesmas notas, eu, não
sou mais eu, pelo menos não sou o mesmo que era antes.
Esse vagar sem rumo pelos caminhos de nossa Maiúscula América
me transformou mais do que me dei conta.
Qualquer manual de técnicas de fotografia pode mostrar
uma paisagem noturna com a lua brilhando no céu e um teto
ao lado que revele os segredos dessa escuridão iluminada,
Mas o leitor deste livro não sabe que espécie de
fluido sensitivo recobre minha retina, eu próprio não
o sei com certeza, então não é possível
examinar os negativos para encontrar o exato momento em que minhas
fotos foram tiradas. Se eu mostrar uma foto noturna, você,
leitor, é obrigado a aceitá-la ou recusá-la
por inteiro, não importa o que pense. A menos que você
conheça as paisagens que eu fotografei em meu diário,
será obrigado a aceitar minha versão delas. Agora,
eu o deixo em companhia de mim, ou do homem que eu era..."
Trecho 2 (págs. 45 a 47)
"Os
Especialistas
A hospitalidade chilena, como eu não me canso de repetir,
é uma das coisas que tornou a viagem através do
nosso vizinho tão agradável.E nos divertimos muito,
como só nós podemos saber. Eu acordei preguiçosamente
sob os lençóis, refletindo sobre o valor de uma
boa cama e calculando a quantidade de calorias do jantar da noite
anterior. Relembrei os acontecimentos recentes: o furo traiçoeiro
no pneu de La Poderosa, que nos deixou empacados na estrada, debaixo
da chuva; a ajuda generosa de Raúl, dono da cama na qual
nós dormíamos agora; e a entrevista que concedemos
a El Austral, em Temuco. Raúl era um estudante de veterinária,
aparentemente não muito sério, e dono do caminhão
onde nós metemos nossa pobre moto para chegar a esta cidadezinha
pacata no meio do Chile. A bem da verdade, nosso amigo pode, em
algum momento, ter desejado jamais ter nos conhecido, já
que nós lhe presenteamos com uma noite maldormida, mas
foi ele quem cavou sua própria cova, ao se vangloriar do
dinheiro que gastava com as mulheres e ao nos convidar para uma
noitada em um “cabaré”; isso levou a uma longa discussão,
que durou horas e que foi a causa de nossa estada na terra de
Pablo Neruda ter sido prolongada. Ao fim da discussão,
é claro, veio o problema inescapável de que nós
teríamos de adiar nossa visita àquela casa de espetáculos
tão atraente, mas, para compensar, conseguimos hospedagem
e alimentação grátis. À uma da manhã,
lá estávamos nós, tranqüilos como se
pode imaginar, devorando tudo o que havia na mesa, o que não
era pouco, e mais um tanto que chegou depois. Em seguida, nos
apropriamos da cama de nosso hospedeiro, já que seu pai
estava se mudando para Santiago e não havia quase nenhum
móvel na casa.
Alberto, ainda morto para o mundo, desafiava o sol da manhã
a penetrar seu sono pesado quando eu comecei a me vestir. Essa
tarefa não era assim tão difícil, já
que a diferença entre nossos trajes diurno e noturno era
basicamente o sapato. O jornal local tinha um número considerável
de páginas, tão diferente dos nossos pobre diários,
mas eu estava interessado somente em um pequeno pedaço
das notícias locais, o qual eu encontrei com letras grandes
na seção dois: DOIS ARGENTINOS ESPECIALISTAS EM
LEPROLOGIA VIAJAM PELA AMÉRICA DO SUL DE MOTOCICLETA. E
mais abaixo, em letras menores: “Eles estão em Temuco e
querem visitar Rapa Nui”.
Em poucas palavras, era assim que nossa ousadia era descrita:
nós, especialistas, figuras-chave do campo da leprologia
nas Américas, com uma vasta experiência, já
tendo curado mais de três mil pacientes, familiarizados
com todos os centros importantes do continente e com suas condições
sanitárias, tínhamos nos dignado a visitar esta
cidadezinha pitoresca e melancólica. Nós imaginamos
que eles iriam apreciar bastante nosso respeito pela cidade, mas
não sabíamos com certeza. Logo, toda a família
estava reunida ao redor do artigo e todos os outros itens do jornal
eram tratados com um desprezo olímpico. E assim, deleitados
com a admiração de nossos anfitriões, demos
adeus a essas pessoas de quem hoje não lembramos nada,
nem mesmo os nomes. Tínhamos pedido permissão para
deixar a moto na garagem de um homem que morava na saída
da cidade e nos dirigimos para lá. Só que, agora,
não éramos mais um par de quase-mendigos com uma
moto a reboque, Não, agora nós éramos “os
especialistas”, e era assim que nos tratavam. Passamos o dia consertando
a moto, e m a empregada mestiça vinha sempre nos oferecer
os mais variados petiscos. Às cinco da tarde, depois de
um lanche suntuoso oferecido por nosso anfitrião, nos despedimos
de Temuco e seguimos para o norte."
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