Abril
Despedaçado
por
Angélica Bito
A câmera é nossos olhos
em um filme. Ela passeia pelos cenários, revela a alma dos personagens
através de seu olhar e mostra ao espectador o que acontece naquela
grande tela na sua frente. A primeira visão, aqui, é a de
um menino, à contra-luz, anunciando ser nosso condutor, assim que
conseguir lembrar a história que quer contar.
São duas, na verdade. A primeira
é a trazida às telas por Walter Salles em "Abril Despedaçado"
(Brasil 2001). Salles, você sabe, é o diretor que apresentou
o novo cinema brasileiro aos gringos com o belíssimo "Central do
Brasil". Agora, o diretor volta ao desértico sertão nordestino
para contar esta história, que se passa em fevereiro de 1910 mas
que, mesmo assim, é um tanto atemporal, visto que alguns pontos
dessa região não se desenvolveram muito deste então.
O lugarejo onde moram as famílias
Breves e Ferreira é o Riacho das Almas. O riacho, como explica o
menino, secou. Mas as almas continuam presas a cada grão de areia,
a cada pé de cana presente naquele lugar. As duas famílias
são rivais e lutam entre si a fim de garantir a honra. Para a família
Breves, esta é a única coisa que resta, já que são
pobres e desiludidos demais com a vida. A história dos Breves, assim
como a dos Ferreira, é marcada por sangue e mortes, tudo por causa
do que parece ser uma tradição estúpida. Parece, mas
tem sua lógica. Entre as famílias rivais, é travada
uma lei sem fiscais, movida apenas por ódio e sede de vingança.
Desde gerações anteriores, o pacto é mantido a fim
de conservar, no mínimo, a honra de seus membros. Se o filho de
uma família é assassinado, seu irmão tem o direito
de assassinar um jovem da outra família. Esta torna-se a única
lei que permanece naquela região, única certeza nas vidas
tristes e miseráveis de quem vive por lá.
Tonho é um Breves. Quando seu
irmão mais velho é assassinado, ele deve matar um Ferreira
e, claro, o círculo acaba fechando nele. Aos vinte anos, o jovem
experimentou pouco da vida, restrita ao Riacho das Almas. A febre de viver,
típica de quem tem vinte anos, foi substituída pelo conformismo
com a morte iminente, perspectiva de vida/ morte já enraizada na
tradição familiar. Lá, se nasce para morrer. A moeda
é o sangue e a tolerância é medida de acordo com a
coloração da última mancha deixada pelo morto, em
volta da bala inimiga que roubou sua vida. O sangue amarelado na camisa
é, não só uma indicação de tempo, mas
principalmente a manifestação do desejo do morto, que quer
vingar sua morte. Quando a hora chega, o sangue da camisa está amarelo,
observação que é uma sentença de morte.
Essa é a espinha dorsal da
história, inspirada em romance homônimo escrito por Ismail
Kadaré. Não podemos dizer que "Abril Despedaçado"
é uma adaptação porque não é. Somente
a trama básica vem da obra literária, todo o restante do
filme é obra da mente dos roteiristas.
Primeiro, a mudança mais evidente:
Salles transferiu a história do livro, que passa nas geladas montanhas
da Albânia, para o árido sertão nordestino. Além
disso, acrescentou um personagem chave ao filme: o pequeno Menino. O seu
não-batismo só denota o clima em que a família vivia.
Nem se deram ao trabalho de dar um nome ao rebento. Para quê, se
ele estava fadado à morte? Pois é esse menino que representa
o não-conformismo pelas tradições, a possibilidade
de poder sonhar e acreditar naquilo que ele não via. Apesar de não
possuir um nome, o menino consegue dar asas à imaginação
e, por isso, serve de ponte para que Tonho também consiga extravasar
seus sentimentos reprimidos no seio familiar. Em terra de cegos, quem enxerga
é rei. E é esse rei sem nome que vai mostrar a Tonho que
há vida fora de sua casa, do canavial, da bolandeira de onde tiram
o sustento da casa. O caçula, no entanto, não descobre essa
possibilidade sozinho: a chegada de uma dupla de artistas mambembes em
uma cidade vizinha atiça a curiosidade do garoto em descobrir o
mundo lá fora. Um presente dado pela dupla é o crucial para
que a descoberta aconteça: um livro. Mesmo analfabeto, mesmo "lendo"
de cabeça para baixo, o menino ainda vê as figuras e sobre
elas deixa sua imaginação infantil fluir, navegar com a sereia
do livro e buscar uma vida alternativa, mais bela do que a real. Se o caçula
começa a descobrir sua própria imaginação,
Tonho, já sentenciado de morte, descobre o amor no sorriso de Clara,
a malabarista que deu o livro ao menino e que se apresenta na cidade ao
lado.
"Abril Despedaçado" não
é só história. É direção, é
fotografia, é direção de arte, e é, principalmente,
feito de excelentes atuações. O conjunto, organizado de forma
harmoniosa, resulta em uma bela obra cinematográfica.
Aqui, Rodrigo Santoro só ressalta
o que já foi provado depois de "Bicho de Sete Cabeças": ele
é mais do que um belo rosto que adorna as novelas das oito; ele
é um ator de fibra que, sim, sabe interpretar. Seu rosto de finos
traços e olhar que mistura o inocente e o angustiado dão
a forma necessária para passar ao espectador os dilemas e a falta
de esperança de Tonho.
O grande destaque do filme, no entanto,
fica por conta do novato Ravi Ramos Lacerda. Paraibano, 13 anos, filho
de uma atriz mambembe, ele interpreta o menino, o único dos Breves
a ter um pingo de esperança na vida. Seus comentários no
filme são o que acabam por descontrair a platéia, entretida
com a tragédia que assola o sertão nordestino. Seu sorriso
sincero e o olhar doce levam ao espectador a esperança sentida por
seu personagem - missão semelhante à do menino Josué
em "Central do Brasil", vivido por Vinicius de Oliveira que, diga-se de
passagem, também está neste filme.
A presença do personagem vivido
por Ravi, na verdade, não existe no romance original. E Salles acertou
em cheio ao acrescentar o menino em seu filme, já que Ravi é
o alvo das críticas mais animadas em relação a esse
filme. Tanto que, pela imprensa italiana, quando seu trabalho foi exibido
no Festival de Veneza, foi chamado de "o anti-Osment do cinema latino-americano"
- "referência ao loirinho-gracinha" Haley Joel Osment, um símbolo
do que seria o cinema Hollywoodiano.
Walter Salles já é
poderoso no mundo do cinema brasileiro, goza de algumas vantagens e muitos
recursos para fazer seus filmes. A nós, espectadores, cabe a tarefa
de julgarmos, como espectadores, o conjunto estético que transforma
um monte de palavras em um filme.
No fim das contas, "Abril Despedaçado"
mistura uma trama densa, uma narrativa e fotografia poéticas e,
antes de tudo, é cinema da melhor qualidade.
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