Hulk
por
Marcelo Miranda
miranda@areaweb.com.br
01/07/2003
Apesar de fazer parte da galeria de
super-heróis da Marvel Comics, o Hulk nem de longe pode ser chamado
de herói, devido à sua fúria destrutiva e perda total
de controle (pelo menos na época clássica das histórias).
Ainda assim, é um dos personagens de maior sucesso da editora de
quadrinhos, desde seu lançamento no início dos anos 60. Já
o cineasta taiwanês Ang Lee sempre passou longe de filmes de ação,
preferindo se dedicar aos dramas familiares e íntimos, mostrando
talento para descortinar quase todo tipo de conflito: o choque de gerações
e de cultura ("A Arte de Viver"), a sexualidade ("O Banquete de Casamento"),
a sociedade inglesa do século XIX ("Razão e Sensibilidade"),
a hipocrisia burguesa ("Tempestade de Gelo") e até embates chineses
("O Tigre e o Dragão",
o mais movimentado de todos), nunca faltando o toque pessoal no roteiro,
o desenvolvimento plausível, as imagens poéticas, os diálogos
intensos. Dessas duas criaturas tão diferentes (Lee e Hulk), nasceu
o mais novo e polêmico longa-metragem inspirado em quadrinhos.
A história modifica alguns
detalhes na origem do personagem, tirando o simplismo de um acidente radioativo
e inserindo uma tramóia familiar, especialidade de Lee: o cientista
David Banner pesquisa o aperfeiçoamento do sistema imunológico
humano, mas o Exército o proíbe de trabalhar. Ele injeta
a substância que criara em si próprio, o que acaba afetando
seu filho, nascido meses depois. O garoto cresce com os sintomas da fórmula,
e presencia algo entre seus pais que mudará sua vida. Anos se passam,
e conhecemos Bruce Banner, às voltas com um experimento de radiação
gama, e sua ex-namorada Betty Ross o auxiliando. Um acidente no laboratório
acontece, mas Bruce, que deveria ter morrido, acaba deixando aflorar toda
a mágoa reprimida em anos na forma do monstruoso Hulk.
O melhor do filme é justamente
seu roteiro, escrito por James Schamus (parceiro habitual do diretor Lee).
Não segue apenas a cartilha natural de dar vida ao Hulk e mostrar
destruição. Cria toda uma empatia com os personagens e mergulha
nos conflitos de Banner, retratando o quanto ele abafou seu sofrimento.
A história flui tão bem neste sentido que as cenas de ação
servem de complemento ao drama principal, e não o inverso: sabemos
que o Hulk vai se materializar, mas sofremos com o protagonista as conseqüências
que isso acarreta. É perceptível seu amor por Betty, o ódio
reprimido pelo pai, o prazer em deixar sair tudo aquilo que sente, o alívio
quando retorna à forma humana.
Com tudo isso, Ang Lee faz o filme
estar um patamar acima nas adaptações de quadrinhos para
o cinema, pois deixa de lado o maniqueísmo latente dessas histórias
para retratar a vida de um homem amaldiçoado, cujo dom não
é o de poder salvar pessoas, mas prejudicá-las. E Lee trabalha
esse lado nada ortodoxo de maneira competente e firme, não deixando
o filme cair na caricatura em que poderia descambar. O tom sério
e a narrativa por vezes lenta da produção casam muito bem
com o assunto abordado, por mais que seja considerado um dos ‘filmes de
verão’ (costumeiramente feitos para as platéias se deleitarem
e não pensarem). Para dar um clima maior de quadrinhos, a montagem
de Tim Squyres é de uma criatividade tremenda, traduzindo de maneira
quase perfeita a linguagem das revistas, com quadros se superpondo na tela,
ângulos múltiplos, acontecimentos paralelos no mesmo take,
divisões de tela e cortes dinâmicos. Concluindo: dentro do
que tinham a oferecer e nos limites que um blockbuster permite, Ang Lee
e James Schamus estão de parabéns.
É nos tão discutidos
e debatidos efeitos da Industrial Light & Magic que fica a ressalva
a "Hulk". Por mais que tenham trabalhado o melhor possível, por
maior a preocupação em tornar a criatura realista, por mais
nobres que fossem as intenções, é preciso admitir:
os efeitos digitais não estão perfeitos. Isso é óbvio,
e sempre foi. Mas havia a esperança de que, na tela grande, a digitalização
do personagem soasse menos artificial. E realmente soa, mas não
a ponto de não percebermos (em alguns momentos, claramente) que
o Hulk não é real. Em certas cenas, o monstro lembra um brinquedo
de borracha, em outros parece um boneco de neve pintado de verde. O ‘gigante
esmeralda’ digital está longe de ser ruim, mas acaba decepcionando.
Em contrapartida, as seqüências que acontecem à noite
(três ao longo do filme) são extremamente realistas, já
que fica mais fácil esconder os problemas dos efeitos. O maior destaque
fica para a batalha do Hulk com os cachorros, um dos momentos mais interessantes
e tensos da fita.
O elenco é irregular. Eric
Bana, como Bruce Banner, não está muito inspirado. O ator
é inexpressivo, o que em parte se justifica pela personalidade do
cientista. Mesmo assim, não convence em muitas cenas (principalmente
em conversas com Betty sobre seus segredos passados e atuais). Por sua
vez, Jennifer Connely novamente está adorável (como esteve
em "Uma Mente Brilhante"
e nos outros filmes que fez), esbanjando inacreditável beleza e
uma sensibilidade tocante para com o ex-companheiro Banner. Já Nick
Nolte aparece bastante envelhecido, no papel do pai de Bruce, e se mostra
em bom momento, canastrão e intenso nas horas certas – Nolte é
mesmo um ator talentoso, pouco reconhecido pelos seus trabalhos. Por fim,
Sam Elliot como o General Ross (numa personificação decalcada
dos quadrinhos) está convincente; e Josh Lucas, na pele de Talbot
(rival de Bruce), não diz a que veio, ficando entre o estereótipo
do malvado e o culpado por fatos importantes.
O filme tem força para agradar
aos fãs do personagem nos quadrinhos, mostrando muita pancadaria,
saltos no deserto, perseguição de militares, carros tombados
e uma infinidade de outros detalhes, incluindo o surgimento de outra conhecida
criatura; e também aos leigos, apresentados a um verdadeiro drama
humano recheado de aventura. Só que dificilmente "Hulk" será
uma unanimidade, como quase chegou a ser "Homem-Aranha"
ou "X-Men 2": muitos espectadores vão torcer o nariz para o ritmo
mais devagar e para os efeitos visuais, além de insistirem em comparar
com a clássica série de TV dos anos 70. Pois, para mim, da
trinca Marvel 2003 nos cinemas (que inclui ainda “Demolidor” e o já
citado longa dos mutantes), "Hulk" é o que mais se aproxima de uma
fita séria e de prestígio ao mesmo tempo em que segue à
risca o estilo quadrinhístico.
PS: é preciso deixar claro
que não é por ter achado os efeitos visuais o maior problema
que vou deixar de colocar "Hulk" como um ótimo filme. A produção
é interessante em tantos aspectos que os efeitos acabam ficando
em segundo plano, por mais que sejam o maior atrativo para o público
e a chave da transposição do personagem às telonas.
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