“Gênesis”, de Robert Crumb
Por Adriano Mello Costa
Um dos grandes nomes da arte underground ilustrando o livro mais mainstream de todos os tempos. O que esperar disso? Ainda mais quando o artista em questão é Robert Crumb e o livro, o primeiro do Antigo Testamento, o “Gênesis”, alicerce de boa parte da cultura ocidental e do cristianismo? Muito se falou e se comentou desde o anúncio da obra até os quatro anos que foram consumidos para sua elaboração, chegando ao lançamento deste em 2009 pela Editora Conrad no Brasil, com 216 páginas, simultaneamente com outros países. Enfim, chegou a hora.
Robert Crumb é de fundamental importância para o circuito alternativo e a contra cultura. Obras como “Mr. Natural” e “Fritz The Cat” são quase imortais. A parceria com Harvey Pekar na série “American Splendor” é outro exemplo de qualidade acima da média. O “Gênesis” é o livro que inicia a Bíblia e versa entre outras coisas sobre os sete dias em que Deus criou o mundo, Adão e Eva, Caim e Abel, a Arca de Noé e Sodoma e Gomorra, temas que tomam parte do inconsciente coletivo de uma parte relevante do mundo.
A união de coisas ao mesmo tempo tão díspares e conflitantes resulta em uma obra que fascina e instiga. Ao recriar o “Gênesis”, Robert Crumb deve ter se controlado bastante para não tomar certas liberdades. E realmente o texto que lemos respeita a história como está contida no livro original (que é uma junção de vários outros, mas isso é outra história). As liberdades que Crumb se dá direito estão nos desenhos e ilustrações, tanto nas paisagens criadas meticulosamente, quanto em personagens como Abraão, Jacó, Raquel e José.
Por ter seguido quase que a risca o original, o texto em vários momentos cansa, pois tem descrições detalhadas das constituições das famílias, com seus filhos e filhos. Em outras passagens – como nos capítulos finais que narram a vida de José – exibe um ritmo forte e repleto de nuances. Crumb capricha nos detalhes e se atem a expressões que dão uma interpretação toda especial, como nas feições das pessoas quando Deus aparece para conversar com elas ou quando alguma coisa muito fora do normal acontece nas suas vidas.
Na sua recriação do “Gênesis”, Robert Crumb não está diante do seu melhor trabalho ou o mais importante. Mas é mais uma obra brilhante sim, com uma arte fascinante em cima de histórias milenares e cheias de vida e vigor. Seu retrato das traições, incestos, sexo e violência, podem assustar uns enquanto outros tendem a acreditar que ele podia ter mexido mais no texto, deixado mais ao seu estilo. Ao meu ver, a obra dosa bem os dois lados e está no ponto certo, caso raro para qualquer artista. Como bem escreveu o jornal inglês “The Guardian”, Crumb é gênio.
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“Bob & Harv”, de Robert Crumb
Por Adriano Mello Costa
O mundo é um lugar cheio de aventuras, de coisas fantásticas, de muitos amores. Então devemos viver com toda a intensidade que podemos, correto? Não para todos. E principalmente não para Harvey Pekar, o idealizador dos quadrinhos “American Splendor”, cultuado entre os fãs da nona arte, assim como pessoas normais ou nerds em geral.
Harvey Pekar construiu histórias tendo a sua vida como pano de fundo, onde ele e seus amigos são o prato principal. Nada demais, a não ser pelo fato de que a sua vida é chata, monótona, normal e até mesmo sonolenta. Trabalha como arquivista em um órgão do governo, é fanático por discos de jazz, tem estratégias para conseguir um dólar dos amigos ou simplesmente como ficar na melhor fila no supermercado.
Essas cenas tão cotidianas de um cara meio paranóico morando em uma cidade onde quase nada acontece, são o tema do recente lançamento da Conrad, “Bob & Harv” que narra o encontro entre Harvey Pekar e o mestre do quadrinhos Robert Crumb (“Blues”, “Fritz The Cat”, entre outros). Os dois se conheceram nos idos das décadas de 60/70 e produziram entre 1976-1983, dentro da revista “American Splendor” uma obra fascinante, repleta de humor negro, sarcasmo, critica social e comportamental e principalmente um culto à contracultura.
O cartunista Laerte diz no prefácio do livro uma coisa bem interessante, pois nos últimos anos estamos dando tanto de cara com esse EUA tão arrogante e imbecil, que esquecemos o quanto esse país tem de artistas contestadores e inovadores. O movimento cultural dos anos 50/60/70, nos gerou nomes do porte de Gilbert Sheldon, Lenny Bruce, Jack Kerouac, William Borroughs, Robert Crumb entre tantos outros. Nomes que influenciaram gerações.
“Bob & Harv” é obrigatório. Não somente para os fãs de quadrinhos, mas para todos que apreciam a arte em geral. O encontro de dois gênios. Pekar o anti-herói que tanto fascina, o cronista de um cotidiano sem graça, sem emoção, mas ao mesmo tempo cheio de coisas pequenas que dão um toque especial. Crumb, talvez o maior autor de quadrinhos da história e sem dúvida um dos maiores desenhistas de toda sua geração. Um duelo de palavras e traços calcados um uma amizade singular.
“Bob & Harv” é humor inteligente. Critica não obsessiva. É arte. É a vida de um cara ranzinza, repleto de concentrações egomaniacas que de forma independente ficou “famoso”, criou uma admiração sobre seu nome, ganhou filme (muito bom por sinal, com Paul Giamatti no seu papel), que aliado a um mestre daqueles que só pintam de tempos em tempos, nos brinda com suas histórias e um retrato mais que fiel da nossa vida tão normal.
“Bob & Harv” é para deixar na cabeceira da cama. Nunca emprestar. Sempre reler. E principalmente sempre admirar.
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Adriano Mello assina o blog Coisa Pop. O primeiro texto é de 2009; o segundo, 2006.
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Leia também:
“Blues”, de Robert Crumb, por Marcelo Costa (aqui)
Pois é, Crumb é realmente foda. Estou no meio da leitura de Genesis e…. interessante. Certamente não é, nem de longe, seu melhor trabalho. Mas isso porque a média dele é muito alta mesmo. Como disso o Adriano, algumas passagens chegam a cansar bastante e entediar, como a listagem das linhagens. Mas tudo faz parte do texto, não tinha como o Crumb fugir. O legal da obra é fazer um cara como eu, que jamais iria beber do texto “original”, no contexto da Bíblia, conhecer melhor este conjunto de registros que, goste-se ou não, fazem parte de nossa cultura. E cara, o legal é perceber como o Gênesis na verdade é um texto cheio de violência, ira divina e violência entre homens. Como deve ser boa parte da Bíblia, imagino….