texto de Renan Guerra
Quando “O Auto da Compadecida” estreou, em 1999, é bem provável que muitos dos artistas envolvidos não imaginassem o impacto que a obra teria no imaginário popular brasileiro. Nascida como uma minissérie de cinco capítulos exibida pela TV Globo, a história é uma adaptação de três textos para o teatro de Ariano Suassuna: “Torturas de um Coração (1950), “O Auto da Compadecida” (1955) e “O Santo e a Porca” (1957). As desventuras de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e seu amigo Chicó (Selton Mello) conquistaram o público e a série ganhou uma nova edição, agora em formato de filme, lançado no ano 2000. Visto por mais de dois milhões de espectadores, “O Auto da Compadecida”, dirigido por Guel Arraes, se transformou no filme brasileiro de maior bilheteria daquele ano. O status de clássico já nascia ali, porém essa aura em torno do filme foi ganhando força com o passar dos anos com suas inúmeras reexibições na TV, um sucesso da Sessão da Tarde e da Temperatura Máxima, nas tardes da Globo. Isso solidificou o filme no imaginário nacional de diferentes gerações e até levou a obra a figurar entre os mais bem-avaliados do IMDB – que, numa atitude questionável, resolveu criar métricas para que filmes vistos como “regionais” não chegassem mais aos primeiros lugares de suas tabelas avaliativas.
Feito esse preâmbulo necessário, é natural que a notícia de uma sequência dessa história, mais de 20 anos depois, gerasse reações mistas, algo entre a euforia pelo reencontro com esses personagens e o medo por se remexer em um universo tão bem estabelecido. Pesa-se aí o fato de que Ariano Suassuna, o autor original, já faleceu (em 2014) e sua história não possuía uma sequência literária. E, em segundo lugar, podemos considerar também a questionável onda de sequências de sucessos pop dos anos 2000, como visto no divisivo “Estômago 2” (Marcos Jorge, 2024) ou no mal executado “Ó Paí Ó 2” (Viviane Ferreira, 2023). A verdade é que a balança estava pesando contra esse retorno e todos os artistas envolvidos em “O Auto da Compadecida 2” parecem ter sentido o peso e a importância da obra em que estavam remexendo. Guel Arraes, diretor e roteirista do primeiro filme, reuniu novamente seus parceiros de roteiro Adriana Falcão e João Falcão e trouxe o reforço do mestre Jorge Furtado – para a direção, entrou o reforço de Flávia Lacerda. Segundo Arraes, outro ponto fundamental nesse retorno foi o apoio de Matheus Nachtergaele e Selton Mello, dois atores que tiveram importantes experiências como cineastas nos anos 2000 e que ajudaram a reforçar esse trabalho conjunto na busca de revisitar o universo de João Grilo e Chicó.
“O Auto da Compadecida 2” nasce, essencialmente, como uma ode ao primeiro filme, tanto que diferentes cenas do primeiro filme irão reaparecer e o próprio elenco do primeiro filme é creditado nos letreiros finais. Guel Arraes e sua trupe buscam a todo momento deixar claro que o primeiro filme é o primeiro filme e nada pode diminuir o brilho e o impacto que ele tem sobre a cultura brasileira. Esse respeito e essa reverência também servem para que “O Auto da Compadecida 2” se solte das amarras e não tenha medo de brincar com o próprio fato de ser uma “parte dois”, uma “segunda ressurreição” desses personagens. Para dar vida a esse universo, o roteiro abandona completamente qualquer contato com a realidade e embarca em uma narrativa ainda mais estilizada – que até lembra, em alguns momentos, as obras televisivas de Luiz Fernando Carvalho, como “Hoje é dia de Maria” (2005) ou “A Pedra do Reino” (2007), essa última também baseada em obras de Ariano Suassuna. Se no primeiro filme o sertão real era um cenário importante, agora o sertão ganha tons que parecem cada vez mais serem existentes apenas nesse universo de realismo-mágico de Suassuna.
Um ponto crucial dessa nova aventura de João Grilo e Chicó é o fato de que, se o filme abusa do saudosismo e da nostalgia, por outro lado, ele não abandona em nenhum momento todas as discussões propostas pela obra original de Suassuna. As críticas à igreja, ao coronelismo e a exploração do povo seguem lá e de forma forte, mas, além disso, eles incluem uma interessante discussão sobre o papel da mídia dentro da política e da sociedade brasileira, tudo isso representado pelo surgimento de uma rádio local na cidade. Além do retorno de João Grilo e Chicó, temos a volta de Virginia Cavendish como Rosinha e Enrique Diaz como o cangaceiro Joaquim Brejeiro. Dos novos nomes, surgem o radialista Arlindo (Eduardo Sterblitch), o político Coronel Ernani (Humberto Martins), o trambiqueiro Antônio do Amor (Luís Miranda) e a socialite Clarabela (Fabiula Nascimento). Fabiula, aliás, talvez seja a mais interessante adição a essa história, com sua atuação teatralizada, que claramente dialoga com a deliciosa Dora, feita por Denise Fraga, no filme original.
De todo modo, o coração de “O Auto da Compadecida 2” ainda está na parceria entre Matheus Nachtergaele e Selton Mello. O envelhecimento dos atores acrescenta maturidade aos seus personagens que, de modo natural, aparecem mais calejados na tela, mais sugados pelo cansaço do tempo, mas que ainda assim mantém aquele mesmo espírito essencialmente brasileiro, que equilibra uma dose de esperteza com um bom bocado de inocência e bondade. A amizade de João Grilo e Chicó se reforça de uma maneira que só pode ser alcançada nas amizades maduras, de quem já passou por muito nessa vida – seja em conjunto ou de forma solitária. E isso é representado pelas atuações delicadas dos dois atores que sabem muito bem que esses são outros João Grilo e Chicó, que eles não poderiam apenas repetir aquilo que foi feito há mais de 20 anos. Nachtergaele, aliás, tem uma prova de fogo na reta final do filme e – sem spoilers – podemos apenas dizer que é mais uma prova de que ele é um dos maiores atores dos últimos 30 anos neste país.
No final das contas, “O Auto da Compadecida 2” é um retorno amoroso a uma história que parece já parte essencial do que é ser brasileiro. João Grilo e Chicó são como nossos velhos amigos queridos e este novo filme sabe respeitar isso ao máximo. Guel Arraes e sua trupe sabem muito bem que não podem fazer um novo filme como foi o primeiro, mas utilizam todo esse universo para criar uma história que respeita o passado, reflete o presente e ainda assim nos diverte e nos emociona em um reencontro com um universo que é nosso, que nos conecta com o que há de mais belo e rico em ser brasileiro e que nos relembra a potência de nossa cultura – via a obra de um mestre máximo como Ariano Suassuna. Por isso, a recomendação final é: não vá ao cinema esperando o filme lá de 2000, mas vá de peito aberto a um novo encontro, recheado de todas as memórias que construímos nesses 24 anos que separam os dois filmes.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.