texto de Davi Caro
“Esta noite vocês vão ver a história do punk rock da South Bay Area sendo feita aqui no palco”, foram as palavras de Keith Morris ao iniciar a dobradinha de sua banda, Circle Jerks, junto aos Descendents, que se reuniram aos velhos companheiros de cena no palco do Terra SP numa noite de sábado, 14 de Dezembro. E, de fato, os muitos felizardos que lotaram a casa foram capazes de testemunhar um espetáculo repleto do melhor do que o punk californiano dos anos 1980 lançou para o mundo, pelas mãos de duas de suas melhores e mais lendárias bandas. Foi histórico, mesmo que não desprovido de atropelos, e fez a chuvosa noite paulistana muito mais feliz para os vários devotos que marcaram presença nos shows – que tiveram direito à uma reprise mais do que merecida no igualmente lendário palco do Hangar 110 no dia seguinte.
A jornada começou (e muito bem) com a abertura dos paulistanos da Under Influence, que vestiram a camisa em um set curto, mas intenso – vale chamar a atenção para o single “Phill”, lançado em Outubro deste ano. Poucos minutos após às 20hs, o Circle Jerks tomou o palco de assalto, num início de show que funcionou também como passagem de som (algo que, nas palavras do próprio Morris, a banda teria sido “preguiçosa demais” para realizar antes). O quarteto, originalmente formado em 1982 após a saída do vocalista do mítico Black Flag – e vale lembrar que Keith não seria o único ex-membro da banda de Greg Ginn a se apresentar naquele palco – iniciou seu show de maneira matadora, como de costume, com “Deny Everything”. Enfileirando paulada atrás de paulada, a apresentação também foi entrecortada pela típica verborragia escrachada do vocalista, que interagia com a plateia e com o técnico de som, à medida que também teve que lidar com problemas na equalização. Isto porque, em determinados pontos da casa, muitos diziam não estarem escutando muito bem os vocais e/ou a guitarra do mestre Greg Hetson (que também é do Bad Religion).
Tal questão passou longe de ser o único problema enfrentado pela banda em seu show. Durante “When The Shit Hits The Fan” (anunciada por Morris como sua canção favorita de seu repertório), um fã que teria pulado a barreira do público acabou se engalfinhando com um dos seguranças, o que chamou a atenção do cantor e levou a uma interrupção da apresentação que se estendeu por alguns minutos. Keith chegou a deixar o palco e, resolvido o conflito, orientou a audiência a procurar se conter quanto a cruzar as grades que levavam ao palco. “Não queremos que ninguém tenha que encher vocês de porrada, mas não há muito mais que possamos fazer para evitar isso”, aconselhou.
O som prosseguiu, com os quatro desfilando clássicos underground um atrás do outro com destaques para “Question Authority” (dedicada aos moralistas de plantão da sociedade “daqui e também a de onde viemos”, como o vocalista definiu), a potente “Beat Me Senseless” e aquela que Morris explicou como “o single que nós esperávamos que fosse nos catapultar em direção ao estrelato […] achávamos que estaríamos junto com o Duran Duran, os Red Hot Chili Peppers, a Taylor Swift e todos esses outros depois dessa”. Era “Wild In The Streets”, entoada em coro por todos os seguidores dedicados no recinto. Porém, o show pareceu ter perdido um pouco em intensidade após o confronto entre o fã e o segurança, mesmo que o atravanco não tenha tirado o brilho de um show competente.
“Competência”, aliás, se mostra uma palavra incapaz de fazer jus ao que se iniciou uma vez que os Descendents tomaram o palco, após um intervalo protocolar de 30 minutos. Milo Aukerman (vocais), Karl Alvarez (baixo), Stephen Egerton (guitarra) e Bill Stevenson (bateria) protagonizaram uma verdadeira aula de punk rock, conduzida por um dos grupos mais influentes e importantes do gênero, e cujo impacto é reconhecido mesmo por outras bandas com um impacto muito maior junto ao mainstream (alô, Blink-182). Também aproveitando seus primeiros momentos em cena para checar seu som por meio de uma curta jam, os quatro músicos não perderam tempo e, após uma breve (e aplaudida) saudação, quebraram tudo com “Feel This” (de “Hypercaffium Spazzinate”, de 2016).
A confiança em seu material mais recente foi igual àquela dedicada a seus grandes clássicos, que já se fizeram presentes logo em seguida: “Hope” (de “Milo Goes To College”, debute lançado em 1982 e do qual boa parte do set foi retirada) e “Silly Girl” (lançada em 1985 no disco “I Don’t Want to Grow Up”). “Clean Sheets” arrancou coros da platéia, que ainda participou efusiva nos refrãos de “Everything Sux” – do disco homônimo de 1995 – de “Rotting Out”, e da icônica “Myage”. Enquanto Egerton destrinchava técnica nas seis cordas e Alvarez mantinha os graves pulsando nas melodias, Stevenson justificava a todos os presentes sua presença em todas as listas de melhores bateristas de punk rock de todos os tempos: de maneira totalmente espontânea, suas performances nos truncados tempos de “Van” e na galopante “Coolidge”, entre outros, remontam diretamente a seus dias de Black Flag, durante os quais registrou as baterias do fundamental “My War” (1984).
O grande destaque, porém, não poderia ser outro: fosse descendo do palco e cantando junto com os fãs no gargarejo, conversando brevemente com a platéia, ou simplesmente mantendo sua singular posição (com a mão no bolso de trás, contrastando com a postura de alguém que passou anos pesquisando biologia molecular), Milo segue sendo um dos grandes frontmen que a cena hardcore já viu. Aos olhos de muitos dos fãs que o assistiam – muitos dos quais, por trás dos óculos de aro grosso que os assemelhavam ao vocalista, não conseguiam conter a emoção – Aukerman despejou todo o carisma que o tornou mitológico.
Mesmo uma inesperada e chocante participação de Evan Dando (do Lemonheads) em “Bikeage” não foi capaz de ofuscar uma performance dedicada e memorável. As bem humoradas canções que se tornaram a marca registrada do grupo (como “I Like Food”, “No, All!” e “’Merican”) se alternaram com músicas que se fizeram presentes via MTV quando do retorno do grupo à cena, nos anos 90 (lá estiveram “When I Get Old” e “I’m The One”). Realmente, não deve ter sido fácil para os outros integrantes seguirem em frente quando o vocalista seguiu seu caminho acadêmico – em que pesem os bons discos lançados, sob o pseudônimo ALL, com outros vocalistas – e o show deste sábado só deixou o motivo mais claro.
As poucas ressalvas só se deixaram ver (e ouvir) a partir do bis, com breves falhas na voz do cantor na celebrada “Good Good Things”. O show de quase 35 faixas, porém, mostrou limitações, mesmo que discretas, no desempenho vocal de Milo, algo que se tornou inegável conforme as últimas canções foram sendo destiladas: apesar de “Kabuki Girl” ter corrido sem interferências, o encerramento, com a demolidora “Get The Time”, se provou um desafio para o cantor, que comentou brevemente: “Esta vai ser uma [canção] difícil”, em tom de brincadeira. A apressada saída do palco, em contraste com a despedida mais acalorada do restante da banda, porém, criou uma sensação de estranhamento, que (se espera) não tenha passado de uma impressão.
O saldo final, conforme poucos poderiam negar, foi mais do que satisfatório: com duas figuras frontais díspares, mesmo que muito compatíveis (a acidez de Morris contra o carisma jovial de Aukerman), pequenos atropelos (no caso do Circle Jerks) e duas bandas mais do que capazes de justificarem seu renome e influência, o espetáculo conjunto dos dois grupos é totalmente compatível com o caráter histórico destacado por Keith na abertura da noite. Nada dura para sempre, infelizmente; aqueles que foram capazes de testemunhar a história sendo feita (e aqueles que, com sorte, ainda serão) podem dizer, com conhecimento de causa, conhecer o impacto e a relevância que só o poder de canções rápidas, sinceras e recheadas de peso e melodia são capazes de conter – e que nenhum percalço, no palco ou fora dele, será capaz de apagar.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Vídeos do canal PunkRockVidz
Realmente o show foi histórico, nós viajamos 7 horas para assisti-lo e valeu a pena.
Só ficamos tristes com a truculência e despreparo dos seguranças que tratavam a todos como marginais.
Senti falta também dos comentlários sobre a banda de abertura Under Influence que foi muito boa e mostrou que estão preparados para muito mais.
Pena que o Punk Rock nacional não esteja muito valorizado e bandas que não conseguem estar dentro de um “circuito” sejam subestimadas e esquecidas, mas ainda temos a nostalgia para nos alimentar e sorte daqueles que conseguem pensar que fazer o que ama sempre vai valer a pena.
Valeu demais pelo comentário! Correção feita 🙂