Ao vivo em São Paulo, Rogério Skylab fala de si, mas se comunica com o id de cada um de nós

fotos e texto de Fernando Yokota 

Em seu “A Pervert’s Guide To Cinema” (2006), Slavoj Žižek compara os três andares da casa em “Psicose” (1960), de Alfred Hitchcock, às três instâncias freudianas: todas as coisas sórdidas, aponta o esloveno, ocorreriam no porão.

Ao apresentar na Casa Natura Musical o show que promove seu último tour de force, “A Trilogia do Fim” (2024), Rogerio Skylab trilha outro caminho e propõe o id como um denominador comum, a praça pública existencial na qual nossos egos ensimesmados, cuidadosamente modelados para a apreciação alheia na era das redes sociais, possam romper seus casulos e experimentar o frenesi coletivo, ainda que por um par de horas.

Acompanhado de Thiago Martins na guitarra, Gabriel Planas no baixo e Gabriel Coelho na bateria, Skylab oferece ao vivo um apanhado de sua eclética discografia. Clássicos estabelecidos do cancioneiro nacional como “Cadê Meu Pau”, “Matador de Passarinho” e “Moto-serra” se misturam a favoritas mais recentes como a pancada “Eu Durmo Pouco Pra Ficar Com Sono” e o irresistível samba gastrossexual “Empadinha de Frango”.

Se “Eu e Minha Ex” de Júpiter Maçã, um dos ídolos de Skylab, faz total sentido no setlist, por outro lado o cachorro caramelo invade o campo e bagunça o jogo com Skylab fazendo um aceno à Santa Cecília e ao Baixo Botafogo ao cantar “Sentimental” dos Los Hermanos (que, bêbado, disse certa vez que era a música mais bonita do mundo).

Em seguida, liga a seta e faz uma conversão abrupta ao momento mais esperado da noite: o anarcotabagismo de “Tem Cigarro Aí” e a chuva de cigarros arremessados pelos espectadores — muitos dos quais nem fumantes são mas que fazem questão de comprar um maço especialmente para a ocasião.

Cada fã tem a sua música favorita, mas o clímax do show só pode ser “O Corvo”. Com uma cenoura na boca, Skylab ressurge no palco como o médico da peste ao som de um instrumental pesado e soturno (que os numerosos fãs com camisetas de bandas de metal reagem calorosamente) e depois de mastigar o legume, passa a cuspi-lo na plateia, em ritual que já se tornou tradicional em seus shows. O inusitado ficou por conta de um dos espectadores que, preparado para o momento, trouxera a sua cenoura para cuspi-la de volta na direção de Skylab. A dramaticidade do solo de guitarra de Thiago Martins e sua Fender Stratocaster preta (com captadores brancos), os cabelos grisalhos de Skylab combinados com camiseta preta (aludindo de forma irresistível a outro indefectível transgressor na figura de Roger Waters), faziam como se estivéssemos presenciando o Pink Floyd apresentando seu disco conceitual sobre os cinco estágios freudianos do desenvolvimento.

Grotesco ou niilista, Skylab parece não se incomodar com esses rótulos. A genialidade, contudo, está em negar o cômico em sua obra (como o faz em diversas entrevistas). O rótulo cômico é um muro que nos dá a falsa autorização de testemunhar o show como circo, em terceira pessoa. Ao invés do muro, Skylab rompe com a ideia do cordão sanitário e propõe um vidro em que o espectador vê o palco mas enxerga o reflexo de si próprio ao mesmo tempo antes de quebrá-lo na invasão do palco em “Você Vai Continuar Fazendo Música?”. O sórdido, o pervertido e o escatológico estão no palco mas também habitam em nós: Skylab fala de si mas, de certa forma, se comunica com o id de cada um de nós e é esse o poder da experiência coletiva de seu show. Eis o xeque-mate ontológico desse grão-mestre da música brasileira.

Setlist:

Aquela coisa toda
Cadê meu pau?
Corpo e membro sem cabeça
Rainha do Mar
Eu durmo pouco pra ficar com sono
Corpo sem pé, corpo sem cabeça
Qualquer um
O corvo
Sentimental
Tem cigarro aí?
Sem Fim
Cabecinha
Empadinha de camarão
Moto-serra
Eu e minha ex
Carrocinha de cachorro quente
Música para paralítico
Fátima Bernardes experiência
Matador de passarinho
Você vai continuar fazendo música?

– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/ 

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