entrevista de João Paulo Barreto
Em 2024, a produtora baiana Olho de Vidro comemora dez anos de atividade. “Solange Não Veio Hoje”, premiado como Melhor Curta Metragem no Festival Internacional de Cinema de Paraty, foi lançado este ano e marcou esse aniversário de uma década da empresa baiana. Fundada em 2014, a Olho de Vidro tem os cineastas Klaus Hastenheiter, Hilda Lopes Pontes e Calebe Lopes, juntamente ao diretor de fotografia, Thiago Duarte, como membros da equipe criativa dos projetos, e traz em seu currículo filmes como os também premiados “Não Falo com Estranhos” (2017), “Onze Minutos” (2018), “Pelano!” (2019) e “Mamãe!” (2021).
“Solange Não Veio Hoje”, filme dirigido por Hilda e Klaus, traz uma ácida crítica social sonre a dependência masculina para com os cuidados domésticos oriundos da presença feminina em uma residência. Na trama, a ausência de uma empregada doméstica traz um gradativo caos ao inerte Alan. O protagonista é um homem de classe média alta que, ao se ver privado da presença de sua funcionária (leia-se babá), inicia um ciclo vicioso no qual a total falta de maturidade e preparo para lidar com as mais simples atividades domésticas, o levam a um declínio físico de si mesmo e seu entorno (destaque para a excelente direção de arte de Angela Carballal). Mas antes disso, o declínio moral de sua pessoa já se faz valer, quando o roteiro insere os preconceitos de classe e abusos empregatícios tão comuns entre os diferentes status econômicos que separam patrões e contratados.
Em entrevista ao Scream & Yell, Klaus comentou que alcançar a marca de uma década dentro do fazer cinema é algo que fica distante de qualquer glamour: “O que realmente sustenta esses dez anos de produção da Olho de Vidro, sem medo de ser brega, é a amizade do grupo e o amor pelo cinema. Tem que ter muito amor e muita amizade pra aguentar a quantidade de perrengue, pneu furado, falta de luz e até tiroteio (!) dentro das histórias de set que já sobrevivemos”, brinca o cineasta, mesmo falando de um momento de tensão. Juntamente a isso, Klaus destaca um lado do fazer cinematográfico que exprime muito a ideia do cinema de guerrilha: “Passamos a maior parte desses 10 anos realizando curtas sem dinheiro, colocando nosso cartão de crédito e cheque especial pra comprar figurino, objetos e alimentação pros filmes, na expectativa maior de olhar pra tela e sentir orgulho do que estamos vendo. Nosso maior objetivo como grupo sempre foi fazer os filmes que gostaríamos de ver e isso nos move mais do que tudo na vida”.
Com uma prolífica carreira de curtas, Klaus destacou no papo os planos para longas-metragens e séries de TV. “Ao chegar aos dez anos de idade, sinto que a Olho de Vidro está preparada pra realizar seus próprios projetos de séries e longas-metragens. Temos diversos deles na manga, quatro roteiros de longas escritos e três séries em desenvolvimento. O nosso grande objetivo agora é conseguir manter essa dinâmica de busca incessante por qualidade e satisfação nesses futuros projetos maiores”, comenta o diretor. Leia a conversa na integra abaixo:
Há dez anos, você iniciava a produtora Olho de Vidro. O nome já vinha de um curta lançado alguns anos antes. Como foi esse processo?
O nome Olho de Vidro vem do primeiro curta dirigido por mim, filmado em 2011 e finalizado em 2012. Foi a minha primeira experiência com audiovisual. Eu parecia uma criança que tinha acabado de conhecer o cinema e queria explorar todas suas potencialidades como uma caixinha de brinquedos. Queria fazer um filme inspirado no expressionismo alemão, filmado no calor de Salvador. O resultado não foi dos melhores, mas encaro como um bom aprendizado. Nós sempre tivemos paixão pelo cinema e vontade de fazer filmes desde crianças. Mesmo não nos conhecendo (talvez indiretamente, pois Hilda foi aluna da minha mãe), vivíamos nessa angústia de querer contar histórias através do cinema, mas achando que só quem nascia em Hollywood podia fazer filmes. Foi conhecendo um pouco mais sobre a produção brasileira e nos inspirando em diversas outras pessoas que conseguiram produzir bons filmes no Brasil, que juntos, após nos conhecermos como diretora e ator na Escola de Teatro da UFBA, decidimos criar uma produtora juntos, a Olho de Vidro, em 2014. O que realmente sustenta esses dez anos de produção da Olho de Vidro, sem medo de ser brega, é a amizade do grupo e o amor pelo cinema. Tem que ter muito amor e muita amizade pra aguentar a quantidade de perrengue, pneu furado, falta de luz e até tiroteio (!) dentro das histórias de set que já sobrevivemos. Passamos a maior parte desses dez anos realizando curtas sem dinheiro, colocando nosso cartão de crédito e cheque especial pra comprar figurino, objetos e alimentação pros filmes, na expectativa maior de olhar pra tela e sentir orgulho do que estamos vendo. Nosso maior objetivo como grupo sempre foi fazer os filmes que gostaríamos de ver e isso nos move mais do que tudo na vida. Claro que uma noção estratégica e estruturante também nos ajuda e muito. Nós sempre definimos um calendário anual e ordem de filmes a serem realizados com muita antecedência, trabalhando com permutas para termos parcerias e apoios para alavancar o valor de produção dos nossos projetos e muita, muita cara de pau e criatividade pra lidar com os percalços no caminho.
Acompanhando o trabalho de vocês desde o começo e vendo essa evolução constante, queria te perguntar sobre a chegada ao time do diretor Calebe Lopes, nome importante no cinema de gênero fantástico feito na Bahia.
Calebe chegou na Olho de Vidro em 2016. Eu não o conhecia direito, só de amizade de Facebook. Ele me chamou pra atuar num curta dele e eu logo topei empolgado. Quando cheguei no set e percebi a potência enorme que ele tem enquanto realizador criativo, a primeira coisa que fiz foi me escalar pra produzir. E desde então, ele entrou no grupo e eu nunca parei de produzir os filmes dirigidos por ele. Nossa troca foi muito positiva, temos roteiros escritos juntos e grandes projetos para o futuro. Sinto que mergulhamos mais no fantástico e na criação de imagens “de cinema”.
E a constante parceria com Thiago Duarte, alguém que venho acompanhando o trabalho há anos e percebo a maestria dele como diretor de fotografia. Como é esse equilíbrio?
Thiago Duarte, o diretor de fotografia da Olho de Vidro, é a pessoa que eu trabalho há mais anos na minha vida. São 12 anos trabalhando juntos. A maior vantagem de trabalhar com um amigo há tanto tempo é que economizamos um bom tempo de set pela nossa capacidade de leitura de pensamentos. Thiago já consegue prever o que a gente quer, puxa nossa orelha e nos faz por o pé no chão quando é necessário e é um verdadeiro mestre no que ele faz. Thiago foi diretor de fotografia de quase 20 curtas feitos na Bahia nos últimos 10 anos, tem prêmios no cargo em diferentes filmes, e mesmo assim é a pessoa mais humilde que eu já tive o prazer de conhecer. Nunca está satisfeito, está sempre coçando a barba olhando como pode melhorar a luz de uma cena e é sempre um dos mais queridos dos nossos sets.
Este ano, você lançou o curta “Solange Não Veio Hoje”, que co-dirigiu ao lado de Hilda Lopes Pontes. Trata-se de um filme afiado em sua crítica social. Como veio a ideia do roteiro?
“Solange Não Veio Hoje” surgiu como uma ideia de filme de comédia em 2018, e em sua primeira versão seria um documentário falso (mockumentário). Ia ser um projeto estilo National Geographic, Globo Repórter, seguindo uma semana na vida de um cara cuja funcionária de sua casa desaparece. O tom seria mais exagerado, a comédia mais escrachada e o deboche com esse cara, fruto de uma aristocracia cafona que temos na Bahia, estaria em maior destaque. Com o tempo, percebendo as mudanças políticas e sociais vividas pelo Brasil após a eleição de 2018, sentimos que o filme merecia ter um outro tom e que se aprofundasse mais no estudo de personagem do que na chacota em si. A inspiração partiu do meu estranhamento ao longo de minha vida ao ver homens sendo sempre servidos por mulheres. Homens que não conseguiam cozinhar e nem ao menos colocar sua própria comida no prato. Em um caso específico, houve até uma situação em que um deles passou uma semana inteira comendo biscoito recheado quando sua esposa viajou. Esse foi o estopim pra Solange e toda a desestruturação na vida de Alan com sua ausência.
E como se deu a construção cênica com um personagem único, quase que exclusivamente em um único cenário a representar a passagem de tempo com a ajuda da montagem e da direção de arte?
“Solange Não Veio Hoje” foi a primeira parceria no cinema entre eu e Hilda com a diretora de arte Angela Carballal, que abraçou o filme, ofereceu a própria casa dela como locação, e fez um estudo minucioso de cada cena pra conseguir entender o escalar dessa sujeira produzida por Alan. Essa parceria foi de extrema importância, e perdura inclusive nos nossos novos filmes que foram filmados após “Solange” e os dois próximos a serem filmados em 2024/2025. Angela tem o equilíbrio perfeito entre criatividade e organização e é uma pessoa que nos inspira demais com sua competência. Dentro dessa lógica de gradação e elipses que o filme propõe, a montagem também tem um papel importantíssimo. Colaborando como conselheiro e amigo em todos os nossos filmes, desde o estalar da primeira ideia, Calebe Lopes esteve em todos os processos do filme muito antes de abrir o programa de edição para iniciar a montagem. Esteve conosco na decisão de escolha de cada plano durante a decupagem e contribuiu muito para o conceito visual e sonoro do filme. Uma das nossas maiores inspirações pra criação de elipses e montagens de passagem de tempo, foram as séries Breaking Bad e Better Call Saul, onde fizemos estudos de planos e cortes para inspiração no nosso trabalho.
Citei cinema fantástico anteriormente e é inevitável não perceber a influência desse mesmo cinema em “Solange Não Veio Hoje”. Como co-diretor, como foi o processo de seleção dos elementos no roteiro e a construção dessa ambientação?
Para nós na Olho de Vidro, uma das maiores belezas do cinema é explorar ao máximo as potencialidades da fantasia. Justamente por se tratar de uma história bastante próxima a realidade brasileira, encontramos no cinema fantástico e na farsa uma maneira de dar um olhar diferente sob um tema que já foi muito visitado e revisitado na filmografia brasileira. O realismo fantástico tem esse poder de mostrar pra gente que algumas situações e algumas convenções do nosso cotidiano são bem mais estranhas e bizarras do que nós temos capacidade de notar. Em Solange Não Veio Hoje buscamos ressaltar essa estranheza através de alguns elementos do apartamento de Alan que conseguem ser, ao mesmo tempo, similares e esquisitos.
O filme, inclusive, tem naquela sequência de abertura, com a construção da história do protagonista através das fotos de época, um outro exemplo bem eficiente desse modo de evidenciar essa ambientação.
Sim, inclusive, a diária em que tiramos as fotos dos anos 1970 foi uma das mais divertidas. Casa cheia, elenco grande de atores que eu super admiro, e novamente a sagacidade de Angela na arte e no figurino de trazer alguns elementos que nos remetem diretamente à nostalgia. Eu fiz questão de tirar uma foto com a garrafa de guaraná Brahma (risos), que acabou quando eu ainda era criança, mas que me remete diretamente a esse sentimento saudosista que tem dentro de nós. As fotos foram tiradas por Gabriela Palha, que envelheceu cada uma pra que pudesse ter aquele aspecto avermelhado e a imagem desgastada, ressaltando essa memória que vai perdendo a nitidez e a nossa própria falta de capacidade de avaliar o passado sem se comprometer emocionalmente,
E como foi o processo com as imagens em Super 8?
A história do Super 8 talvez seja uma das mais interessantes que envolve o filme. Meu avô tinha uma Super 8 e adorava filmar. Quando eu era pequeno achava o máximo, tentava pedir pra ele deixar eu filmar, mas ele nunca deixava com medo que eu quebrasse. Há alguns anos, pouco antes dele morrer, ele me pediu pra revelar algumas imagens de Super 8 que ele nunca tinha revelado. Demorei um pouco pra conseguir, mas deu tudo certo. Um dia, bateu alguma coisa em mim e eu decidi editar um resumo de 5 minutos desse material pra mostrar pra ele. Ele morreu algumas horas depois de assistir, logo depois de eu ter finalizado essa demanda. Dentro dessas imagens, tinha uma filmagem que ele tinha feito do meu tio jogando tênis, e por mais absurda coincidência que possa parecer, eu estava começando a primeira semana de produção de “Solange não veio hoje”, e eu tinha como protagonista um cara que era um garoto jogador de tênis nos anos 1070. Que me perdoem os cineastas baianos do Super 8 que eu muito admiro, mas o maior cineasta que eu quis homenagear com esse filme foi aquele que nunca de fato foi um, mas é uma das minhas maiores inspirações de vida: meu avô.
Você falou sobre a chegada de Calebe à Olho de Vidro e eu o vejo assinando boa parte da montagem dos filmes desde então. Como é essa influência e esse diálogo? Os cortes rápidos de “Solange Não Veio Hoje” denotam muito bem esse ritmo.
A grande vantagem de ter um editor como melhor amigo do roteirista é poder planejar alguns desses cortes desde o início do projeto. Muitos desses cortes estão descritos no próprio roteiro e a ideia de mesclar momentos de cortes rápidos e outras cenas mais alongadas e contemplativas sempre foi um objetivo nosso. A inspiração em Win Wenders, Breaking Bad e Better Call Saul nos ajudou bastante nessa construção de um ritmo que não se apegasse a um único tom, e que pudesse crescer junto com as possibilidades de variação.
E os próximos dez anos da Olho de Vidro?
Ao chegar aos 10 anos de idade, sinto que a Olho de Vidro está preparada pra realizar seus próprios projetos de séries e longas-metragens. Temos diversos deles na manga, cerca de quatro roteiros de longas escritos e três séries em desenvolvimento. O nosso grande objetivo agora é conseguir manter essa dinâmica de busca incessante por qualidade e satisfação nesses futuros projetos maiores.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador.