Disponível no Disney+, “Beatles ‘64” prova que mesmo a mais contada das histórias pode ter algo de novo

texto de Davi Caro

É uma ideia tão difundida que já se tornou fato consumado junto ao imaginário popular: a sombra do assassinato do presidente John F. Kennedy, ocorrido em Novembro de 1963, assolou a população estadunidense e provocou uma onda de desesperança e confusão disfarçada de luto coletivo que pairou sob as mentes dos cidadãos naquele início de década. A chegada dos Beatles em solo americano, pouco mais de dois meses depois, já no início de 1964, representou mais do que um feixe de luz que cortou através da desilusão – não poucos poderiam dizer que as primeiras apresentações do quarteto de Liverpool nos Estados Unidos foram, hipérbole à parte, um marco sócio-civilizatório que alterou o curso da história. John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, assim como as muitas figuras que os rodeavam, sempre mostraram total ciência do impacto que suas primeiras andanças em solo americano significaram para as pessoas que os viram. Mas quem são, realmente, estas pessoas? E o que elas têm a dizer, ainda hoje, sobre aquele fatídico ano, cinco décadas mais tarde?

“Beatles ‘64” (2024), documentário dirigido por David Tedeschi com produção de Martin Scorcese (e colaboração de McCartney, Starr, Olivia Harrison e Sean Ono Lennon), surge para responder tais perguntas, entre várias outras, que o mundo alterado pelos Beatles pode nem sequer ter se dado conta de formular. Fazendo uso de depoimentos novos gravados pelos dois remanescentes, assim como resgatando imagens já bem conhecidas de arquivo – muitas das quais já agregaram produções como o projeto multimídia “Anthology” (1995), bem como os documentários “John Lennon: Imagine” (1988) e “Eight Days A Week: The Touring Years” (2016) – o longa se vale de um generoso ás na manga: uma série de filmagens inéditas gravadas pelos irmãos Albert e David Maysles durante aquela primeira turnê dos Fab Four pelos EUA, que centram foco não apenas no quarteto, como também em transeuntes e pessoas com pouca, ou nenhuma afinidade para com a música dos quatro rapazes. Assim como, claro, nas hordas de adolescentes que cercavam os britânicos, tamanha a fascinação exercida por eles em uma juventude que buscava sua própria identidade, e significado, em um mundo cada vez mais complexo.

Outra grande sacada da produção está em trazer novos depoimentos destes mesmos fãs, tantos anos depois, conforme estes colocam em perspectiva a mudança que a chegada dos Beatles representou em sua vida. Muitos destes, aliás, responsáveis por respeitáveis carreiras desde então. O escritor Joe Queenan, por exemplo, protagoniza passagens tocantes nas quais fala sobre sua criação reprimida, e se emociona quando relata a mudança que ver o quarteto acabou significando em sua própria trajetória. O fotógrafo Harry Benson, por outro lado, recorda com horror a péssima recepção que os músicos tiveram quando participaram de um evento promovido pela Embaixada Britânica de Washington, onde foram menosprezados por sua origem trabalhadora, típica da região portuária da qual vinham. Jamie Bernstein (filha do maestro Leonard Bernstein) reconstrói suas lembranças de assistir aos quatro em sua primeira, e mitológica, aparição no programa televisivo de Ed Sullivan. Seu pai, aliás, se mostra um dos grandes defensores da difusão da música pop protagonizada pelos jovens músicos, com direito a um depoimento de arquivo no qual relata ter sido banido do celebrado Carnegie Hall por, simplesmente, haver dado seu aval pessoal para que os Beatles se apresentassem no local.

Os testemunhos dos fãs de primeira hora, aliás, fazem com que estes sejam os reais protagonistas da produção (mesmo com a participação ativa tanto de Paul quanto de Ringo, e com inserções de entrevistas antigas com John e George): seja através do relato de Sananda Maitreya (anteriormente conhecido como Terence Trent D’Arby), que conta sobre sua infância religiosa e sobre a ruptura que o surgimento dos ingleses configurou em sua jornada artística; ou de David Lynch, que presenciou o show realizado em Washington em um palco centralizado – com o praticável da bateria de Starr parando de funcionar na metade da apresentação. Uma das mais notáveis contribuições parte do produtor musical Jack Douglas: fascinado com a descoberta de “Please Please Me” (1962) e “With The Beatles” (1963), o americano realizou, junto com um amigo, uma viagem de navio rumo a Liverpool, onde acabou tendo que entrar escondido por não ter um visto de trabalho. O jovem músico, que terminou deportado de qualquer modo, conta sobre como suas tribulações acabaram o colocando na capa do principal jornal da cidade, e como o fato acabou o beneficiando: Douglas acabaria sendo o produtor de “Double Fantasy” (1980), disco de retorno de Lennon após cinco anos de distância do showbiz, e também trabalharia no póstumo “Milk And Honey”, de 1984. O mesmo Lennon, diga-se de passagem, se mostrou um tanto paranóico em relação a armas de fogo nesta primeira visita à América, tão pouco tempo depois do assassinato de Kennedy. Trata-se de algo, no mínimo, ironicamente mórbido em retrospecto.

Para além das filmagens de época conduzidas pelos irmãos Maysles – cujo estilo alinhado com as tendências do cinema verité emprestariam dinamismo e drama ao icônico “Gimme Shelter” (1969), onde documentaram a infame turnê dos Rolling Stones pelos Estados Unidos – e das novas entrevistas realizadas por Scorcese, o maior trunfo de “Beatles ‘64” acaba sendo, no entanto, a abordagem realizada da chegada do quarteto por parte daqueles que mais os influenciaram: os artistas negros dos EUA. Smokey Robinson, por exemplo, relata a emoção de haver conhecido os músicos em turnê pouco tempo antes, e da honra de escutar sua “You Really Got A Hold On Me”, gravada no já citado “With The Beatles”. Ronnie Spector (em depoimento póstumo) traz suas próprias reminiscências do fascínio dos rapazes por seu próprio grupo, The Ronnettes, assim como pelas Supremes de Diana Ross, e por Little Richard. Ronald Isley (dos Isley Brothers) explica o respeito que sentia da parte dos britânicos, que ia mais longe do que a regravação de “Twist And Shout”. Tais aparições acabam adicionando um elemento pouco citado em documentários produzidos anteriormente, e enriquecem uma narrativa já conhecida por tantos de maneiras pouco esperadas: trazendo a inevitável comparação com Elvis Presley, a relação dos Beatles para com seus ídolos afro-americanos tinha tons de admiração genuína e gratidão artística, ao invés de usurpação, ou de cooptação.

Ninguém deveria se sentir culpado por pensar em “Beatles ‘64”, em um primeiro momento, como supérfluo, tamanha a quantidade de filmes e séries dedicados a recontar, ou documentar, cada passo dado pelos quatro garotos de Liverpool. É aí, porém, que reside o maior êxito da produção: ao trazer para os holofotes aqueles que tiveram suas trajetórias alteradas (ou mesmo determinadas) pela existência dos Beatles em suas vidas. O quarteto retornaria para sua terra natal dali a pouco tempo, e voltaria outras vezes. Eles quebraram paradigmas, costuraram polêmicas e criariam todos os precedentes possíveis para o conceito de “fandom”. Mas nenhum deles jamais esqueceria sua primeira vez em solo americano, ou seria capaz de ignorar a transformação que aquilo representou em suas vidas. “Beatles ‘64” deixa claro, por fim, a transformação que eles deixaram para trás, contada por uma geração que começa a nos deixar, apesar de ainda ter muito a dizer.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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