Em noite de emoções, cafonice e muitas rosas, Roberto Carlos grava no Allianz seu último (será?) especial de Natal da Globo

texto de Renan Guerra
fotos de Bob Paulino / Globo

Roberto Carlos é figura fundamental para se pensar a cultura brasileira dos últimos 60 anos. Entre admiradores e detratores, é fato comum que a presença de Roberto e seu pretenso reinado são fatores definidores da música brasileira na segunda metade do século XX. Posto isso, é interessante observar como a figura mítica de Roberto é construída e reforçada por um meio muito forte: seu especial de final de ano na TV Globo. Para diferentes gerações, a figura de Roberto está intrinsecamente ligada ao especial, tanto é que muitas pessoas apenas o conhecem a partir deste retrato repetido todo final de ano na televisão. E são 50 anos na tela dos brasileiros! Desde 1974 o programa só não foi ao ar uma vez, em 1999, em função do falecimento de Maria Rita, esposa do cantor. O especial de Roberto se tornou o palco em que ele celebra e recebe jovens artistas, dialogando com figuras que foram importantes durante o ano ao mesmo tempo em que repete os mesmos números, com um repertório de poucas mudanças e um eterno saudosismo aos tempos de Jovem Guarda ou de sua importante fase dos anos 1970. O programa é também uma espécie de condecoração para as estrelas da Globo que brilharam no ano: atores e atrizes que tiveram destaque ou popularidade naquele ano acabam sendo as escolhidas para cantar com o Rei, receber uma rosa de suas mãos ou mesmo mostrar seus sorrisos e lágrimas na primeira fileira do show.

Gilberto Gil e Roberto Carlos

Desenhado esse cenário, fica bastante claro o motivo de todo o burburinho em torno da possibilidade de 2024 ser a edição final do especial de Roberto. Em março deste ano, o contrato do músico com a Globo terminou e isso deu início às especulações do encerramento desta tradição. Com a marca de 50 anos de programa e a opção por um especial gravado no Allianz Parque, em São Paulo, com amplo público pagante, se reforçou esse panorama de encerramento da atração. E esse seria um ponto final muito bonito, bem quando se fecha o ciclo de 50 anos, ainda com um show de ingressos esgotados em um estádio. Até porque, cá entre nós, o programa já não vinha muito bem das pernas: nos anos 2000 o especial foi se tornando ainda mais engessado e monótono – pinçando uma ou outra participação interessante, o resto sempre pareceu um requentado de mais-do-mesmo. De qualquer modo, o ponto é: se temos a possibilidade de experimentar a gravação de um especial tal qual um global, por que não viver esse momento? Por isso fomos ao Allianz Parque no último dia 28 – uma quarta-feira, dia que seria oficialmente de futebol, porém esta semana os jogos foram excepcionalmente adiantados para a terça-feira – para o show/gravação do (talvez último) especial de final de ano de Roberto Carlos.

Frejat, João Barone, Paulo Ricardo e Roberto Carlos

O estádio do Palmeiras, que nos últimos anos se tornou um importante palco musical em São Paulo, ganhou cadeiras em seu gramado para receber um público que em sua maioria já havia passado dos 50 anos. O mar de senhoras dominava os espaços, pois as mulheres eram extensa maioria; deixamos claro que ainda tínhamos uma boa leva de senhores emocionados com o Rei, mas as mulheres realmente dominavam. Vestidinhos leves, saltos Usaflex e leques era o dress code da noite – o calor de quase 30 graus fez todo mundo suar na plateia do Allianz. O mais comum – e bonito de se ver – eram as famílias reunidas, com filhos acompanhando mães, pais e avós. Até se via uma boa turma com cara de fã-clube camiseta-especial-e-faixinha-na-cabeça, mas a turma que lotava as arquibancadas – de onde esta reportagem acompanhou o show – tinha mais uma energia de primeira viagem, com a emoção de quem pega um trem pela primeira vez. “Criando novas memórias” lia-se o post na tela do celular de uma mulher ao lado de sua mãe idosa. Esse era o tom: muitas canções entoadas em meio a abraços coletivos, muitas selfies em grupos e muitos cantos em coro.

E essa emoção nem foi diminuída por questões técnicas que pudessem afastar o público. Em diferentes momentos, o som da voz de Roberto parecia quase abafado pela música, seu canto parecia se perder no meio do coro de vozes. E é importante deixar claro: aos 83 anos, Roberto realmente está mais frágil, mais debilitado pelo tempo. Mesmo assim, sua voz mantém uma força interessantíssima e ele ainda sabe brincar e seduzir a plateia. Mas, por alguma questão, suas falas e conversas com o público soavam distantes e quase incompreensíveis em alguns momentos; e isso se repetiu quando alguns convidados foram falar ao palco, como por exemplo Gilberto Gil e Zeca Pagodinho. Pequenas questões que são incômodas, mas que não apagam o brilho da noite. E já que citamos os convidados, vale destacar aqui as estrelas que passaram pelo palco: ao lado de Gilberto Gil ele resgatou “Vamos Fugir” e “A Paz”; com Zeca Pagodinho e Pretinho da Serrinha eles revisitaram “Deixa a Vida Me Levar” e homenagearam Dona Ivone Lara com “Sonho Meu”; com Frejat, Paulo Ricardo e João Barone eles fizeram um pout-pourri dos clássicos rock da Jovem Guarda; ao lado de Wanderléa ele resgatou “Na Paz do Seu Sorriso”, lá de 1979, e celebrou os anos de amizade; com Chitãozinho e Xororó foi o momento de “Evidências” e “Sinônimos”, que o Rei mais assistiu do que cantou; e com as atrizes Dira Paes, Letícia Colin e Sophie Charlote ele revisitou as dolorosas “Olha” e “Como Vai Você”, em momento que lembrou o especial “Elas cantam Roberto Carlos”, de 2009, também exibido pela Globo.

Sophie Charlotte, Leticia Colin, Dira Paes e Roberto Carlos

O repertório ainda fez um passeio pelo tempo, então temos as baladas poderosas dos anos 1960 e 1970, como “Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo” e “Detalhes”; visitamos os momentos religiosos com “Nossa Senhora” e “Jesus Cristo” (que, curiosamente, é um dos momentos mais pop e dançantes do show, tanto que fez o público levantar de suas cadeiras); e ainda passeamos pelas poucas canções recentes de Roberto, então dá-lhe “Esse Cara Sou Eu”, “Eu Ofereço Flores” e “Bicho Solto” – faixa que há anos está para ser lançada, mas que ainda não ganhou lançamento oficial. Isso tudo, claro, nos arranjos mais caretas possíveis, ainda estamos falando de um especial de Roberto Carlos – quem espera outra coisa dele em 2024 está sonhando; não podemos mais esperar o Roberto das produções caprichadas dos anos 1970, ele não é mais isso há anos e tá tudo bem, ninguém comprou gato por lebre nesse show. O combo clássico é emoção, uma dose de cafonice e um caminhão de rosas. Mesmo na estrutura gigantesca do estádio, Roberto ainda deu um jeito de entregar suas rosas para as fãs que se aglomeraram na beira do palco. Para todos os outros, chuva de rosas nos quatro cantos do Allianz. Ok, eram pétalas feitas de papel, mas o efeito visual era de uma chuva de rosas vermelhas que emocionou o público e fez muita gente ficar catando “pétalas” pela arquibancada.

Wanderléa e Roberto Carlos

Pra fechar, claro, temos que sempre celebrar a sagacidade dos ambulantes: camisetas, bandanas, faixas? Que nada! Na saída do show, a pedida eram rosas, pra ninguém voltar pra casa sem a sua. E sabe o que é pior? O clima do final do show te deixa tão alegre que dá vontade de sair comprando rosas para mãe, avó, tia e todo mundo mais. E foi isso que muita gente fez: eram mães e esposas e mulheres levando suas rosas brancas e vermelhas para casa; e mais, muitas saíam de mão cheia, com 4, 5, seus mini-buquês de lembrancinha. A memorabília de quem ficou firme em um show que começou pouco depois das 20h30 e se acabou quase 23h30 – na fila do banheiro masculino alguém brincava entre risadas “eles têm que entender que não pode fazer show de 2h30, 3h para esse público do cabelo branco”. Mas parte da mágica é essa, de algum modo há uma experiência de retroalimentação entre artista e público: aquelas pessoas se desafiam, se animam e se abrem para um show longo de arena tudo para ver seu ídolo, e esse mesmo ânimo transborda para Roberto Carlos, que, mesmo com suas limitações do tempo, parece se emocionar ao ainda receber tanto carinho.

Chitãozinho, Xororó e Roberto Carlos

A conclusão é que as novas gerações podem até questionar os títulos e os louros deste reinado, mas ninguém consegue negar que não há nenhum artista recente que chegue perto de mobilizar uma plateia como faz Roberto Carlos. O tempo agiu, muitas cafonices imperaram e ainda assim segue emocionante e envolvente vê-lo no palco. É música apaixonada e apaixonante, em um repertório invejável. E, acima de tudo, é uma experiência coletiva de total transbordamento do que a música nos proporciona: amor, alegria, emoção, encantamento. Ver mulheres e homens de 60, 70, 80 anos cantando emocionados às suas canções é arrebatador, apesar do tempo, dos problemas e das dores, ainda “ficaram as canções”.

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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. As fotos são de Vitória Proença.

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