Faixa a faixa: Meno Del Picchia fala sobre “Maré Cheia”, seu sexto álbum solo

texto de introdução de Marcelo Costa
faixa a faixa de Meno Del Picchia

Ser músico no Brasil é ser, mais ou menos, como Meno Del Picchia. O cara é músico, e também antropólogo. Já rodou (e continua rodando) o Brasil acompanhando nomes como Badi Assad, Ana Cañas, Tulipa Ruiz, Alessandra Leão, Bocato e Otto – se você já viu algum show do Galego, a chance de ter visto Meno no baixo da Jambro Band é imensa –, mas mantém não apenas um projeto musical paralelo (o interessantíssimo Amarelo, com Allen Alencar, que fechou uma trilogia de EPs em 2023) como também uma carreira solo bastante ativa, que chega agora ao sexto disco com “Maré Cheia’ (2024), lançamento do selo Pequeno Imprevisto.

Se o segundo disco solo de Meno, “Macaco Sem Pelo” (2013), combinava carimbó e reggae de maneira solar, e o terceiro, “Barriga de Sete Janta” (2016), buscava inspiração na música caipira para narrar a história de um andarilho de coração partido, “Maré Cheia” namora o pop eletrônico, cortesia do produtor alagoano Batata Boy, que assina a produção do disco. “O Batata vem de uma turma de Maceió, ao lado de nomes como Bruno Berle, que produz músicas com uma estética quase atmosférica. São arranjos com espaços e com uma doçura que eu associo a essa vivência que eles tiveram à beira-mar”, diz Meno.

Como você irá ler no faixa a faixa abaixo, muitas das canções de “Maré Cheia” nasceram como sambas, que foram descontruídos – ele chega a linkar duas versões anteriores de canções do álbum, aprofundando o mergulho do leitor ouvinte. “Busquei algo mais suave, como se estivesse tentando traduzir em som o sentimento que temos quando estamos de frente para o mar e enxergamos o horizonte”, explica Meno. “Acho que estava procurando resgatar o vazio que, na metrópole, é preenchido pelo excesso de construções”, completa. Com você, “Maré Cheia”, de e por Meno Del Picchia.

01) Quero ver Tatá – Essa faixa é uma homenagem descarada ao Tatá Aeroplano. Tatá e eu somos amigos de adolescência, fomos vizinhos em Bragança Paulista nos anos 1990. Lembro que nessa época ele chegava com uns cadernos cheios de letras em casa e a gente ficava tentando musicar – uma dessas letras, “Antropofagia”, foi gravada depois no primeiro disco da banda Cérebro Eletrônico. “Quero ver Tatá” surgiu primeiro como um samba e, nas mãos do Batata Boy, com suas drum machines, ganhou uma sonoridade eletrônica e dançante. Tatá é um super DJ da cena paulistana, então tinha que ser uma faixa pra dançar e acaba sendo uma homenagem à figura do DJ, de modo geral. Foi também a primeira vez que experimentei o autotune na voz.


02) Retina – Também começou como um samba de dois acordes no violão, mas, quando eu e o Batata começamos a produzir, tentamos desconstruir a batida original. Os primeiros versos falam desses finais de relacionamento que se estendem no tempo e parecem nunca acabar de verdade. É minha primeira parceria com o artista alagoano João Menezes, que pra mim é um dos grandes compositores dessa nova geração. Mandei uma primeira parte quando João ainda estava morando em Maceió e ele me devolveu rapidamente a segunda que fechou a composição, tudo pelo Whatsapp. A faixa tem ainda a participação especial dele cantando.


03) Fogo bom – Essa música é uma parceria com o sergipano Allen Alencar e já havia sido lançada no álbum da nossa banda Amarelo. Nela a gente usa o fogo como metáfora do início de uma paixão, é “um fogo sem fumaça”, que “incendeia o ar”. Foi muito legal gravá-la de novo e ver como uma mesma canção pode vestir várias roupas diferentes. Na versão do Amarelo, “Fogo Bom” aparece bem acústica, quase folk. Na nova, o Batata explorou mais uma vez suas drum machines, com sintetizadores, autotune na voz, reinventando mesmo a composição. É com certeza a faixa em que a personalidade do produtor se expressa mais intensamente e pra ela também fizemos um clipe.


04) Nunca vi nevar – Aqui a metáfora da neve surge para falar de um relacionamento que esfria. Em oposição à ideia do fogo, essa imagem apareceu muito naturalmente. Entre 2022 e 2023, me vi em um relacionamento à distância por cinco meses – Nina, minha mulher, foi pra Londres, e eu continuei em São Paulo. Só sei que, depois de dois meses, a gente já estava cansado de se relacionar por mensagens de textos, chamadas de vídeo, e uma dessas ligações terminou meio triste, que foi justamente quando ela me mandou um vídeo da neve começando a cair por lá. O primeiro verso da música (“Nunca vi nevar/ Moro numa vila onde faz calor/ O ano inteiro) veio no mesmo instante. E, de fato, eu nunca vi nevar!


05) Sombra e luz – Essa faixa foi composta em uma viagem que fiz à Vitória em 2023. Foi feita à beira-mar, na praia de Manguinhos, onde encontrei meus amigos Juliano Gauche e Sil Ramalhete. Faz parte de uma leva de poesias marítimas que escrevi observando as marés, observando o céu e o jogo de luzes e sombras que as nuvens fazem com o sol. O arranjo que criamos traz essa atmosfera contemplativa e doce; me transporta para um entardecer na orla de Manguinhos. Novamente, Batata e eu gravamos tudo, somando timbres eletrônicos a instrumentos acústicos como o violoncelo.


06) Maré cheia – Faixa-título do disco, traz a voz de Anaïs Sylla cantando comigo. Talvez seja momento mais denso do álbum e, ao mesmo tempo, o mais cíclico poética e sonoramente. A letra é quase um haicai que surgiu em uma viagem ao litoral da Bahia, enquanto eu caminhava na orla e observava o vaivém das marés – mais uma poesia marítima. A harmonia gira em torno de dois acordes e é o único arranjo sem beats do álbum. Foi uma alegria enorme ter a voz da Anaïs nesse trabalho, uma artista que já admirava há muito tempo, e que trouxe um brilho novo à composição. “Maré não espera ninguém/ Maré baixa vai, maré cheia vem!”


07) Canção de amor só de raiva – Lembro que em alguma conversa com o Romulo Fróes, eu disse que ia fazer uma canção de amor só de raiva e ele na hora falou: “cara, isso é bom, é verso de música”. Daí logo depois musiquei o trecho (“Fiz uma canção de amor só de raiva/ Tô sentindo a tua dor, quero que você saiba”), criei uma harmonia, cantarolei uma segunda parte da melodia ainda sem letra e mandei pra ele. E daí o Romulo me devolveu o restante da composição lindamente. Dessa vez, Batata e eu optamos por não desconstruir tanto a batida de samba no violão e o arranjo final tem um beat do Batata que respeitou bastante a versão original.


08) Debaixo da mesma lua – Essa é a composição mais antiga do álbum. Fiz na época do impeachment da Dilma Rousseff, esse momento que marcou o início dessa cisão radical entre direita e esquerda pra minha geração. Tentei expressar na letra meu desejo por uma união baseada no amor coletivo, que conseguisse superar essa oposição. Assim como em “Fogo bom”, existe uma primeira versão dessa canção no Youtube, cantada de um jeito bem acústico e melancólico nas vozes de Alessandra Leão, Lu Horta, Felipe Antunes e Juliano Gauche. No novo arranjo, ela surge mais solar por meio de um beat cíclico, sintetizadores e baixo elétrico. Acho que, no fim, a sonoridade do disco é resultado do meu encontro com o Batata Boy, da mistura de referências e temporalidades que cada um de nós trouxe na bagagem!

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

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