entrevista de Renan Guerra
Bruce LaBruce é uma figura importante no underground desde os anos 1980. Seu fanzine J.D.s, criado ao lado de G.B. Jones, é um dos marcos fundamentais da organização do movimento queercore – o braço LGBTQIA+ do movimento punk. Seu trabalho no cinema se transformou em um dos mais ousados e transgressores do new queer cinema nos anos 1990, sendo ele muitas vezes chamado de o “enfant terrible” dessa geração e, ele mesmo, negando uma associação direta com esse movimento. Artista provocativo, LaBruce enche seus trabalhos de pornografia, violência e temas bastante espinhosos, sem medo de misturar política, gênero, sexo, religião e dogmas sociais em um caldeirão que já gerou uma série de obras que desafiam o público – ame ou odeie, é quase impossível passar sem reação pelas obras do artista canadense.
Este ano, Bruce LaBruce voltou ao Brasil para participar do 32º Festival MixBrasil e veio com uma agenda cheia. “O Intruso” (“The Visitor” no original), seu mais recente filme, participou da mostra competitiva do evento e recebeu sessões comentadas pelo diretor – o longa será lançado no Brasil em uma parceria com a distribuidora Imovision, que já tem outros filmes do diretor em seu catálogo.
Além disso, sua carreira cinematográfica está sendo revista na exposição “Bruce LaBruce Sem Censura”, aberta no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, até 26 de janeiro de 2025, com uma pesquisa interessante e farta em material gráfico e audiovisual, incluindo a exibição de uma série de curtas-metragens raros do diretor. Trívia: apesar do sugestivo nome “Sem Censura”, a exposição do MIS proibia que fotos fossem tiradas em seu interior devido ao caráter +18 das obras. Para fechar essa visita ao Brasil, Bruce LaBruce ainda foi premiado com o troféu Ícone Mix, premiação que celebra figuras importantes da cultura queer e que têm uma relação histórica com o festival – LaBruce já esteve anteriormente no MixBrasil em 1999 e 2008.
Nestes dias de festival, o público abraçou ao máximo as polêmicas de LaBruce e fez fila para visitar sua exposição, bem como lotou as sessões de “O Intruso”, e isso talvez tenha um motivo bem explícito: em tempos de tantos retrocessos e moralismos, a radicalidade de sua obra parece ainda mais pulsante e interessante. Para entender como temas como religiosidade, pornografia e política se mesclam em sua arte, batemos um papo com Bruce LaBruce um pouco antes da abertura de sua exposição no MIS. Abaixo você pode ler o papo na íntegra:
Você veio ao Brasil algumas vezes e visitou algumas cidades. Como está sendo esse retorno?
Tem sido ótimo. É sempre bom voltar ao Brasil sempre que tenho a oportunidade. Estive aqui há uns 8 anos, acho, talvez 10 anos atrás. Tive a oportunidade de vir porque uma organização criou uma programação sobre new queer cinema e com isso fui de cidade em cidade com meu filme “No Skin Off My Ass” (1991), que estava incluído na mostra. Fui com meu filme para o Rio de Janeiro, Curitiba e Salvador e isso foi fenomenal. Foi ótimo ver aqueles filmes e mostrar os meus, poder conhecer estas cidades e mostrar meus filmes em lugares que eu não tinha mostrado antes. Também mostrei filmes no Fantaspoa (Festival Internacional de Cinema Fantástico) em Porto Alegre (em 2014). Então sim, já fui ao Rio muitas vezes, tanto para o Queer Festival quanto para o Festival do Rio. Acho que desenvolvi um certo público brasileiro – além disso, meu novo filme, “O Intruso”, agora tem uma distribuidora aqui [Imovision]. Posso dizer que me sinto em casa no Brasil.
Quando você recebeu a sua premiação no MixBrasil deste ano você relembrou sobre algumas experiências um tanto quanto “safadas” que você viveu no Brasil. Quer falar mais sobre isso?
[Risos] Bem, isso foi há um bom tempo. Talvez tenha sido na última vez que estive em São Paulo… acho… Estive aqui duas vezes: a primeira vez foi com meu filme “Skin Flick”, em 1999, e depois acho que em 2008 com meu filme “Otto [ou Viva a Gente Morta]”. E durante essa viagem, eu visitei uma infame sauna, foi uma experiência e tanto nessa sauna gay que eu não sei o nome ou onde era – eu acho que não existe mais. Mas no local havia nove ou dez chuveiros que eram famosos com os caras tomando banho, onde você podia escolher qual você queria. Além disso, havia uma drag queen no palco com uma espécie de cabaret acontecendo, com pessoas sentadas em mesas e havia pequenas salas para as quais você subia: escolhia seu “dançarino particular” e os levava para cima. Então foi tão divertido que eu tive que voltar uma segunda vez! Foi muito interessante. Mas havia outras coisas que também aconteciam e que eles me levaram, sabe? André [Fischer] e mais alguém, não consigo lembrar quem, mas eles nos levaram para um espaço que parecia um antigo centro, em que havia uma espécie de troca-troca de casais nos fins de semana, onde os carros andavam em círculos, as pessoas saltavam dos carros e entravam em outros carros e faziam sexo com outras pessoas. Ah, em um estacionamento também! Era uma loucura, pois havia uma colina onde os traficantes costumavam ficar e os garotos de programa ficavam na rua. Eles ficavam de pau duro e você podia, tipo, abaixar a janela e tocar no pau duro deles enquanto você passava, dar um tapa no pau duro deles enquanto você passava [Bruce repete o gesto com a mão e ri]. Foi bem intenso e maluco.
Então, como já entramos no assunto sexo, eu quero saber como sexo, fetiche e pornografia se tornaram uma forma tão importante de expressão para você?
Isso começou quando eu era punk e, você sabe, nós tínhamos um fanzine queer punk chamado JD’s e meio que fomos creditados por começar o movimento queercore e era meio estranho, nosso fanzine era uma combinação estranha da sensibilidade camp de gays old school que nós misturamos com um tipo de interesse no universo de Andy Warhol e sua The Factory. E também como nós éramos obcecados com organizações terroristas como o SLA, o Exército Simbionês de Libertação, e a Facção do Exército Vermelho [Grupo Baader–Meinhof] na Alemanha. E nós misturamos tudo isso e adicionamos pornografia, porque nós estávamos interessados em ser assumidamente gays e a melhor maneira de mostrar isso era mostrar sexo gay explícito! Então no final das contas era meio que direcionado mais para os liberais do que para os conservadores, porque os conservadores são muito fáceis de ofender. Os liberais têm essa ideia às vezes de “está tudo bem, você pode fazer o que quiser, desde que não ostente ou desde que não empurre isso na nossa cara” ou ainda “você pode até gostar disso, desde que seja relativamente bem comportado” ou algo assim, e isso para mim sempre teve um senso de condescendência ou de auto-censura. Então, para fazer filmes gays explícitos não há nada disso. Quero dizer, é muito direto, não há como se esconder atrás de nada, é sem remorso, é direto e você aceita ou não.
Além de sexo e pornografia, outros dois temas fundamentais do seu trabalho são política e religião. Vamos começar com religião. Você foi criado em uma família católica? Como o catolicismo se tornou tão fascinante para você?
Então, eu não fui criado como católico. Eu estava na seita cristã mais chata possível, a United Church (of Christ) [Igreja Unida de Cristo, em português], uma espécie de seita presbiteriana chata, da qual se tirou toda a diversão, se tirou todo o sexo, tirou tudo isso, você nem bebia vinho de verdade quando você tinha comunhão, a gente bebia algo como um Ki-Suco, não tinha álcool. A hóstia sagrada era como um biscoito. Enfim, não era uma religião nem um pouco sexy. Sempre tive uma inveja católica, como se eu invejasse a Igreja Católica porque ela era tão barroca e tão bizarra e tão ostentosa e tão camp e tão fetichista, de algum modo, sabe? Então, sim, eu gravitei em torno dela em termos de representação sexual queer. Por exemplo, eu fiz uma exposição de fotos em Madri em 2012 chamada “Obscenity” que foi uma loucura, causou um furor nacional. O prefeito de Madri na época tentou fechá-la, isso estava em todos os jornais e piquetes foram montados do lado de fora da galeria, tanto que alguém jogou um dispositivo explosivo na janela da frente no dia seguinte à abertura e que não explodiu, mas a polícia foi chamada e saiu em todos os jornais. E isso tudo aconteceu porque era uma exposição sobre a intersecção do êxtase sexual e religioso e como os os santos católicos são fetichizados. E tudo isso é meio que construído na religião, é sobre opressão sexual, é sobre um tipo de mentalidade triste e masoquista onde a carne se torna vil porque te afasta do céu, o que de algum modo levou à ideia de autoflagelação, e que se transformou em um tipo de fetiche masoquista. E tudo isso é construído, né?
Agora vamos falar de política: você se classifica como um anarquista, certo?
Bem, vagamente, sim, podemos dizer que um anarquista livre.
Sim, pensando nisso, como você vê o movimento que vivemos agora com o aumento considerável de movimentos de extrema direita e tanto poder que eles têm agora?
Em um certo nível a gente quer pensar que é cíclico e a história retorna, como um pêndulo que oscila para frente e para trás e vemos isso muito em democracias. De todo modo, o que está acontecendo agora, nos Estados Unidos, por exemplo, é um pouco sem precedentes, porque eles estão realmente tentando meio que erodir o próprio tipo de sistema democrático e desmantelá-lo. É bem assustador. Mas em termos de sexualidade, eu penso que se o pêndulo oscila para frente e para trás, às vezes faz ainda mais sentido nós sermos sexualmente radicais. E em outros momentos, acho que você tem que ser muito inteligente sobre a maneira como faz isso. Sabe, usar sexo explícito pode ser como um instrumento muito contundente, então tento fazer isso de uma forma mais romântica. Sempre tive uma veia romântica em todos os meus filmes, os personagens, mesmo que se entreguem a fetiches extremos, são personagens muito humanos e emocionais que têm sensibilidades românticas. E acho que todo mundo tem seus fetiches diferentes e a chave é não se envergonhar por isso ou não se sentir envergonhado, mas meio que descobrir uma maneira de como isso conecta você à humanidade e as outras pessoas, e ser quem você é. Os fetiches muitas vezes têm uma reverência real pelo objeto de amor, não é como se as pessoas pensassem nisso como algo muito destrutivo e perverso, mas eles realmente têm uma ternura real pelo objeto de amor e, novamente, um respeito quase religioso, um tipo de adoração ao objeto de desejo. Isso é algo que eu tenho em todos os meus filmes.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.