texto de Renan Guerra
Um imigrante negro chega à Inglaterra através de suas águas. Espécie de figura quase alienígena, nosso protagonista é, ao mesmo tempo, um visitante curioso (tal como no título original “The Visitor”) e um intruso em uma outra configuração (como reforça o título nacional de “O Intruso”). Esse novo visitante se acomoda na casa de uma família burguesa e por lá irá criar um jogo de sedução no qual irá conquistar cada um dos integrantes deste espaço, indo do empregado da casa ao pai da família. E sim, você já (ou)viu essa história antes, pois esse é o enredo de “Teorema”, de Pier Paolo Pasolini, ousado e polêmico filme de 1968. De todo modo, se as bases de “O Intruso” estão no psicológico e filosófico filme do diretor italiano, a ideia de LaBruce é oficialmente subverter isso e transformar tudo em uma teatralização camp, exagerada e debochada.
Para deixar claro, o filme de Bruce LaBruce opta por uma narrativa completamente estilizada, com atuações que não buscam o real e com caracterizações que deixam visualmente claras suas divergências com os personagens apresentados textualmente. Os atores abraçam esse exagero estilístico e a edição apenas exacerba isso, tanto que essa opção pode ser um incômodo inicial para quem não está acostumado ao tom “Labruciano”. Em tempos de um cinema que busca sempre o real, “O Intruso” manda qualquer possibilidade de verossimilhança para as cucuias. A ideia aqui é construir um universo que só existe na tela, em que o exagero e o caricatural auxiliam no desenvolvimento narrativo. Bishop Black, o nosso visitante-protagonista, é o que mais se entrega a essa perspectiva, entregando uma atuação quase alienígena, que coloca seu corpo a esse jogo de sexo-ironia-e-deboche. Bishop é o mensageiro da transformação sexual e da “mensagem filosófica” do filme e o faz a partir de uma atuação cômica, que joga com a sexualização de seu corpo e que se coloca a favor das experiências propostas pela narrativa – e por LaBruce.
“O Intruso”, pra deixar claro, é um filme pornográfico. E dizer isso de um filme de Bruce LaBruce é quase falar o óbvio, pois o usual é a gente avisar quando um filme dele não é pornográfico, tipo quando ele fez o excelente “Gerontophilia” (2013). Mas enfim, aqui o sexo é explícito, seja ele heterossexual ou homossexual. E é filmado com detalhes bem gráficos, com suas estilizações, claro, mas ainda assim bem explícito. Isso é tão natural no universo de LaBruce, que após algum tempo de filme se torna completamente comum, apenas uma parte essencial da narrativa. Neste contexto, o sexo está a serviço de uma narrativa que entende que o prazer e o tesão ainda são tabus e problemas claros da nossa sociedade. E por isso mesmo esse visitante vem para trazer essa experiência que relembra e bagunça diferentes questões.
No meio de todo esse sexo, entram mensagens diretas que soam quase como slogans políticos. Isso é algo que LaBruce já tinha usado com sucesso no cult “The Raspberry Reich” (filme de 2004 que ganhou o nome brasileiro de “O Exército das Frutas”), onde as frases de impacto surgiam sobre as cenas de sexo. Em “O Intruso” elas aparecem como letreiros velozes, ao estilo Gaspar Noé, e criam momentos cômicos-e-reflexivos no meio das cenas pornográficas, como em um momento em que o visitante come o empregado da casa e vemos um letreiro que relembra que o sexo é atividade importante do proletariado; ou ainda quando o visitante fode o dono da casa, o pai da família, e vemos o letreiro que relembra que o oprimido deve foder o opressor. Há um deboche e um sarcasmo típicos do universo do diretor e que dialogam com sua história, com um cinema que sempre soube ser transgressor, sem deixar de lado o bom humor.
Todo esse grande ato que constrói a parte inicial e central do filme é cheio de bom humor e deboche, criando e desconstruindo símbolos, porém “O Intruso” engata em um ato final que busca ser mais conceitual, com certos simbolismos ora óbvios ora mais obtusos. Um dos nossos personagens fode um grande letreiro em que se lê “Capitalismo”; em outros takes vemos nossos personagens quase que santificados, entre o êxtase da dor e do prazer, como mártires de alguma coisa; em outro universo vemos uma personagem em sua tentativa de parto à la “Macunaíma”; enfim, há aqui uma tentativa de aprofundamento nos tópicos anteriormente apresentados no filme, porém nem tudo soa interessante, com muitas experiências se mostrando mais fechadas em si mesmas do que claras ao público. Há uma busca por uma elevação teórica que nem sempre se sai eficaz. Esse ato final quase derruba o filme, deixando um retrogosto esquisito. De todo modo, os atos anteriores ainda permanecem ricos e interessantes em sua anarquia camp.
O fato é que alguns trabalhos de Bruce LaBruce têm teses mais interessantes do que sua execução e isso quase chega a se repetir aqui. Quando “O Intruso” se assume debochadamente exagerado é onde o filme mais brilha, porém quando o diretor tenta se mostrar metafórico e analítico, é onde o filme se fragiliza. Eis um filme de momentos, com seus problemas e falhas, mas que, ainda assim, na balança final se mostra divertido e transgressor em suas desrespeitosas ousadias. Não é indicado para todos, mas mesmo assim ainda é obra múltipla, incômoda e questionadora para quem se deixa mergulhar nesse universo.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.