texto de Otávio Augusto
Em “Dor e Glória”, filme que Pedro Almodóvar lançou em 2019, havia um olhar comovente sobre os dilemas do envelhecimento e as memórias revisitadas por um cineasta em decadência desde a sua infância. O diretor espanhol retoma o tema com seu primeiro filme em língua inglesa, “O Quarto ao Lado” (2024), nos oferecendo uma profunda reflexão sobre a finitude da vida. Baseado no romance “O que você está enfrentando” (2020), de Sigrid Nunez (lançado no Brasil pela Editora Sextanye), “O Quarto ao Lado” ganhou o Leão de Ouro de Melhor Filme no 81º Festival de Veneza, curiosamente também o primeiro de Almodóvar na sua carreira.
Julianne Moore e Tilda Swinton atuam de forma magistral como Ingrid e Martha, grandes amigas que se uniram em Nova York na década de 1980, mas que estão afastadas há muito tempo. Elas se reconectam quando Ingrid (que é escritora de romances) descobre que Martha (uma ex jornalista correspondente de guerra) está sendo tratada de um câncer. A partir disso a reconexão entre as duas percorre caminhos reflexivos e desafiadores.
Desde o reencontro fica evidente que temos uma história sobre amizade, lealdade e memórias compartilhadas, além de uma escolha totalmente difícil e solitária por parte de Martha. Apesar do período em que ficaram distantes, desde a primeira visita ao hospital, as amigas se aproximam como nunca antes. Martha conta a história de sua filha Michele e como a omissão sobre quem era o seu pai causou uma relação difícil e distante entre as duas. Por causa dos seus traumas, Martha tem uma necessidade urgente de falar e de contar as suas dores e Ingrid é a sua escuta. Martha tem um câncer cervical em estágio três e aguarda que o tratamento experimental que está recebendo funcione.
A partir do fracasso do tratamento, Martha diz a Ingrid, quase em um sussurro, que conseguiu – na Dark Web – uma pílula ilegal para eutanásia. Ela organizou tudo: deixará um bilhete para a polícia, explicando que só ela é responsável por seu destino. E ela não quer que um estranho descubra seu corpo. Quando decide que é a hora certa, o que ela quer, diz ela, é saber que um amigo está “no quarto ao lado”. Ela decidiu que Ingrid será essa amiga, embora saiba que Ingrid tem uma tremenda dificuldade com a morte.
O diálogo entre as duas varia entre a tensão e o humor ácido quando relembram um antigo amante que compartilharam. John Turturro é Damian, um pesquisador e palestrante sobre a questão ambiental que parece ter perdido qualquer capacidade de ver beleza na vida. A situação de Martha reaproxima Ingrid e Damian. Ingrid é uma personagem cativante que atua como um elo de esperança entre uma amiga com câncer e um ex amante sem esperanças no futuro do mundo.
Martha, apesar do câncer e da iminência da morte, é uma mulher forte e decidida sobre o plano para o seu fim. Ingrid, assim como faz com Damian, tenta trazer alguma beleza aos últimos momentos da sua amiga. Quando Martha aluga uma casa de campo para o cenário ideal para a sua morte, passam os dias conversando sobre os livros, os filmes, as músicas e a arte que compartilham e torna aquele vínculo tão especial.
Martha está pensando nos trechos finais de “Os Mortos”, livro que James Joyce lançou em 1914, e então elas passam uma noite assistindo a versão cinematográfica de 1987 dirigida por John Huston em uma das cenas mais bonitas do filme. Tudo isso em um cenário bonito onde a produção e o figurino são caracteristicamente almodóvarianos.
“O Quarto ao Lado”, que possui belas referências técnicas a “Persona” (1966) de Ingmar Bergman aqui e ali, tem uma mensagem direta sobre a importância de conexões verdadeiras, sobre o prazer e a beleza de estar vivo e sobre como é fundamental encontrar uma forma bonita de viver mesmo diante do caos e do vazio.
– Otávio Augusto é historiador e fã de cultura pop;
A crítica mostrou-se sensível a duas questões de fundo do filme: a finitude da vida e a importância das conexões. Mas, um parágrafo e meio são traiçoeiros com os leitores, pois antecipa, inteiramente, o “plot twist” do filme e razão de ser do título.