texto de Leandro Luz
Uma das grandes surpresas da 48ª Mostra, “Eephus” (2024) é um filme estadunidense dirigido pelo estreante em longas-metragens Carson Lund que acompanha uma partida de um time amador de beisebol. O jogo se desenrola durante um dia inteiro – a primeira cena é rodada ainda antes do sol nascer e a última se dá já coberta pelo breu da noite – e acontece em um “campinho de bairro” localizado na região da Nova Inglaterra, no extremo nordeste dos Estados Unidos. Traçando um paralelo com a cultura brasileira, Lund enxerga o beisebol da mesma maneira que poderíamos, pelas bandas de cá, nos referir ao “futebol de várzea”, com as suas características específicas em relação ao esporte profissional e toda a carga sentimental que carrega.
É sempre muito difícil falar em originalidade no campo das artes, mas “Eephus” entabula uma vigorosa abordagem que possui poucos paralelos imediatos no cinema. Trata-se de um filme de ficção, ainda que toda a descrição que se possa fazer sobre ele sugira uma elaboração narrativa do campo documental. A ação é direta e simples: temos o jogo, que dura um dia inteiro, temos as peças do tabuleiro que se movimentam na medida em que são demandadas – anotador, árbitro, jogadores, espectadores habituais que moram no bairro, crianças e jovens que por ali circulam casualmente, uma namorada um tanto desinteressada -, todas elas ocupando uma dupla função em comum que é a da observação. Lund, que não apenas dirigiu, mas também montou o filme, está tão interessado na partida em si quanto no rosto de quem a observa.
Uma pista referencial para dialogarmos com o filme está no elenco. Lund convida Frederick Wiseman para fazer um tipo inusitado de narrador. Wiseman é um diretor veterano com uma obra incontornável, frequentemente dedicada a investigar as instituições norte-americanas com uma meticulosidade espantosa. Seus documentários, sobretudo os mais recentes, possuem cerca de 3, 4 e até 5 horas de duração, e demonstram uma dedicação ferrenha na maneira como observam os seus objetos de estudo. “Eephus”, pelo contrário, é uma ficção de apenas 90 minutos, mas compartilha de uma obsessão muito parecida e se mostra brilhante na maneira como manipula o tempo e o espaço de sua narrativa. Outro convidado ilustre é Bill “The Spaceman” Lee, famoso arremessador canhoto que jogou por anos a Major League, principal competição profissional de beisebol, com maior notoriedade no Boston Red Sox, um dos times mais importantes na história do esporte. A participação de Lee ajuda a dar a dimensão dessa espécie não-reacionária de nostalgia que o filme propõe, e a sua condição de não-ator contribui para uma atmosfera que visa também o inesperado.
Há algo nessa lógica de observação que harmoniza muito bem com a postura política – ainda que muitos lerão como alienada – do filme. Na trama, a partida retratada será a última desses homens nesse campo cuja demolição está prestes a acontecer. O próprio diretor jogou beisebol a vida inteira e aproveitou a oportunidade para se afastar do que os outros filmes do gênero sempre fizeram, ou seja, ele traz para o primeiro plano um aspecto recreacional do esporte, se afastando da ideia de competitividade. É uma obra rara que nega uma percepção nostálgica da vida, se concentrando na força do presente.
O roteiro de Lund, em parceria com Michael Basta e Nate Fisher, privilegia diálogos sobrepostos que trazem um humor bastante específico e articula bem os acontecimentos com a utilização de elipses bem planejadas. Se há espaço para improvisação no trabalho com o elenco e em como eles manipulam o texto, para a encenação tudo parece milimetricamente planejado. Lund sabe como aproveitar a sua locação e se vale de sua experiência pregressa como diretor de fotografia para demonstrar pleno domínio no trabalho de iluminação (Greg Tango assina a função). Em entrevista para o site film in revolt, Lund diz que a maneira como rodou o filme em externas e em scope, com todos aqueles homens de uniforme, foi certamente sugada dos filmes de faroeste clássicos, principalmente os trabalhos de John Ford e Budd Boetticher. Filma-se o grupo de homens, muitas vezes privilegiando o plano conjunto ou mesmo planos ainda mais abertos para dar a entender a força do coletivo.
O título do filme traz a expressão “eephus” que nada mais é do que um termo no beisebol atribuído a um tipo de arremesso caracterizado por um grande arco e pela baixa velocidade da bola. O arremessador pega o rebatedor desprevenido. É exatamente isso que “Eephus” faz com os seus espectadores, o filme nos pega pelo braço e faz experimentos conosco, chega até a telegrafar algumas ações. Mas o elemento surpresa se mantém presente e constante.
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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.