texto de Renan Guerra
Família é um tema riquíssimo para o cinema. Praticamente todos os grandes diretores passaram pelos causos familiares, podendo ir dos dramas existencialistas de Ingmar Bergman, pelas perspectivas psicóticas de Hitchcock ou pelo olhar cômico de Woody Allen. É um tema que, em diferentes visões, pode render possibilidades únicas e complexas, como as modernas famílias experimentadas nos filmes de Pedro Almodóvar e Hirokazu Kore-eda. Mesmo assim, o clássico dos traumas causados pelas relações pais-e-filhos segue sendo um ritual complexo na tela do cinema. Dito isso, é comum que muitos desses filmes acabem por pender para determinados lados, com mães narcisistas ou filhos psicóticos. É difícil demais dominar essa balança e criar obras que apresentem ambos os lados com o mesmo peso, com personagens que conseguem contemplar as nuances mais humanas, afinal, o fato de sermos seres-humanos falhos faz com que uma pessoa possa ser boa e delicada na mesma medida em que se permite ser amargurada e violenta. “Malu” (2024), de Pedro Freire, consegue, de alguma maneira, caminhar sobre essa corda bamba, com personagens que despertam ternura e ódio na mesma medida.
Isso, de algum modo, pode advir do fato da trama nascer de uma história real, mas isso é fato menor para a apreciação do filme, que conta a história de uma atriz de meia idade, a personagem-título, interpretada por Yara de Novaes, que após anos trabalhando e viajando com peças de teatro acaba em uma casa no litoral carioca, em meio a uma nascente favela, em um espaço ainda em construção, no qual ela deseja erguer uma espécie de centro cultural, com teatro, cinema, café e tudo mais. Nesse espaço, Malu mora com sua mãe idosa, Lili (Juliana Carneiro da Cunha), e seu amigo Tibira (Átila Bee). A narrativa se inicia com o retorno de Joana (Carol Duarte), a filha de Malu, após uma temporada na França. Depois de uma temporada na casa de seu pai – ex-marido de Malu e persona com quem a mãe ainda disputa a escritura da casa onde vive –, a jovem Joana decide passar uma temporada ao lado da mãe e da avó. Com as três reunidas se cria um jogo complexo, numa experiência que vai do afeto ao enfrentamento.
Com essa estrutura que passeia entre as relações destas três mulheres, o filme de Pedro Freire se constrói basicamente dentro da casa de Malu. Não pense, porém, que temos um filme teatral e de uso mínimo de cenário. Nossas três personagens circulam, andam pelos diferentes cômodos e constroem um universo particular – tanto que, ao final do filme, é como se conhecêssemos cada cômodo da casa de Malu. A teatralidade não se expressa de forma direta na estética do longa-metragem, pois esse é realmente um filme de cinema, com uso inteligente da câmera e compreensão de planos e contraplanos num trabalho cuidadoso com profundidade e movimentação do foco. A teatralidade está nos meandros da construção do filme, com um elenco que vem de uma vivência de teatro. O método de trabalho de Pedro Freire também se constrói num universo de ensaios e repetições, tal qual o teatro – vale frisar aqui que Pedro, além de diretor, tem importante experiência como preparador de elenco.
Isso tem resultado direto na tela: “Malu” é um filme de atrizes. Yara de Novaes, Carol Duarte e Juliana Carneiro da Cunha criam uma trinca raras vezes vista no cinema brasileiro. Não existe hierarquia entre elas, as três estão num ponto e num nível muito alto, em que a sinergia é que determina a força e importância do filme – qualquer descompasso nas atuações poderiam prejudicar o resultado final. Carol Duarte está segura e defende sua personagem sem deixar que ela caia na perspectiva de jovem mimada ou imatura, conseguindo transpassar todas as dores, medos e angústias de um filho de pais instáveis e complexos. Juliana Carneiro da Cunha tem o personagem mais dúbio e complexo, mas, mesmo assim, consegue navegar pelas nuances que vão da violência e conservadorismo ao afeto e cuidado. Há um monólogo em que ela consegue deixar o espectador sem fôlego, em uma montanha russa de emoções, o conduzindo por toda a complexidade que o texto propõe. E, claro, temos Yara de Novaes que, sem exageros, vive aqui seu momento Gena Rowlands. Malu é personagem demasiado humana e, por isso mesmo, poderia cair no espaço do desprezo ou da caricatura, porém Yara foge disso, entregando uma performance que complexifica a personagem, nos fazendo passar por sensações como o ódio, a compaixão, o desprezo, a compreensão e outros mais. As três atrizes foram recentemente premiadas no Festival do Rio: Carol e Juliana compartilharam o prêmio de atriz coadjuvante e Yara levou o prêmio de melhor atriz – o filme ainda saiu do festival com os prêmios de Melhor Roteiro e Melhor Filme.
Como adiantamos anteriormente, muito da complexidade e humanidade do filme pode advir do fato de essa ser uma história baseada na realidade. Dito isso, o resultado final é louvável, pois muitas vezes filmes baseados em fatos reais podem se perder em memórias cristalizadas pelo tempo e banhadas de sentimentos como idealização ou rancor. Pedro Freire reconta aqui a história de sua mãe, a atriz Malu Rocha – Pedro é fruto do casamento dela com o também ator Herson Capri. Segundo o diretor, foi um processo complexo e doloroso de construir o filme sem que ele virasse uma experiência recheada de amargor ou mesmo um processo de busca de cura fechado em si mesmo. Falando da figura real, Malu Rocha esteve em novelas e filmes populares, mas foi uma atriz essencialmente de teatro, construindo sua carreira em montagens importantes ao lado de diretores como Plínio Marcos, e companhias fundamentais como o Teatro Oficina – esteve no elenco seminal do musical “Hair” no Brasil. O filme de Pedro não necessariamente constrói uma narrativa celebratória da carreira da mãe, na verdade o filme se dedica ao final de sua vida, na apresentação de uma personagem que talvez nem agradasse a personagem real, e essa é a narrativa possível para seu filho nesse momento.
Todo esse pano de fundo real é praticamente um “fait divers” quando pensamos no todo de “Malu”. O filme de Pedro Freire existe por si só, sua construção narrativa sobre essa família e essas mulheres é de um primor e de uma densidade que leva o espectador por uma jornada intensa de sentimentos e sensações – tenha você uma família disfuncional ou não, é bem difícil passar ileso por essa experiência. A resolução final é: assista “Malu” de uma tacada só e aproveite o escuro do cinema para liberar qualquer choro que esteja preso por aí.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.