Ouça “ELÔ, disco em que Reiner explora o colorismo, o racismo e os desafios da meritocracia no contexto amazônico

texto de abertura por Marcelo Damaso
faixa a faixa por Reiner

O nome “ELÓ, escolhido para batizar o projeto, não é mera coincidência. Ele representa a força vital e indomável que permeia o povo amazônico e sua cultura distintiva. Assim como Henri Bergson, pensador francês do século XX, argumentava que o “Elã Vital” era a essência da própria vida, o projeto “ELÔ reconhece essa mesma vitalidade intrínseca na riqueza cultural amazônica.

Com produção musical de Léo Chermont (STROBO, os Amantes), músico com reconhecimento nacional e internacional por sua abordagem da música amazônica, “ELÔ explora temas como colorismo, racismo e os desafios da meritocracia no contexto amazônico.

Contando com participações dos artistas amazônidas Eliakin Rufino, Bruna BG e Iris da Selva, a intenção de Reiner é mostrar uma Amazônia diversa que não se limita a gêneros musicais, experimentando com o rap, poesia roraimeira e boi-bumbá, por exemplo. O álbum não apenas aborda questões sérias, mas também toca em temas de afeto e cuidado, há uma verdadeira declaração de amor à cidade de Belém, com todas as suas contradições e complexidades, presente na versão da música “Coisa de Louco”, do cantor Robson, brega lançado em 1985 que está no disco.

O disco “ELÔ é uma expressão vibrante da cultura amazônica que se baseia na filosofia do “Elã Vital” de Bergson. Seu compromisso em abordar questões raciais, culturais e sociais relevantes, juntamente com suas iniciativas de engajamento e trabalho de base, torna-o uma força valiosa na promoção da compreensão desses temas em Belém do Pará e em toda a região amazônica. Abaixo, Reiner comenta todas as canções do disco!

01. “GATILHEIRO” feat Mainumy – Essa música foi a escolhida para abrir o disco e “abençoá-lo” com a energia de luta de Quintino Lira, conhecido como Quintino Gatilheiro, uma figura que lutou contra a grilagem de terras no interior do Pará, tendo um exército de guerrilheiros de em média duzentas pessoas. Quintino foi assassinado de forma covarde pela Polícia Militar do Estado do Pará, sob ordens de Jader Barbalho, pai do atual governador do Estado. Ele foi enterrado em uma cova rasa muito longe dos palcos de suas lutas, mas foi achado por seus seguidores, o que resultou em uma procissão até Ourém, cidade onde teve uma conexão bastante forte com a sua população. A figura de Quintino é vista como emblemática e muitos dizem que ele foi o último cabano… isso tudo é curioso pois Quintino foi morto no dia que o monumento em homenagem à cabanagem, projetado por Oscar Niemayer, foi inaugurado em Belém. Nessa música, trouxe um sample de Portishead, da música “Threads”, e percussões indígenas tocadas por Isma Rodrigues de forma genial.


02. “ELÔ – A faixa-título vem pra fazer um “resumo” do que virá no disco. Usando a célula do congo de ouro no início e desembocando em funk carioca nas duas partes iniciais, o intuito era fazer um paralelo entre o tamborzão dos anos 90 com o congo, um ritmo sagrado das religiões de matriz africana. O interlúdio da música apresenta um carimbó com vozes harmonizadas em que me inspirei bastante em Os Tincoãs. O carimbó é um ritmo tradicional da minha região e trazer essa intenção sagrada com essa batida ao fundo é como eu vejo e sinto a importância de valorizar o que é nosso aqui na Amazônia. A letra fala de como nós, amazônidas, saímos atrás na corrida de galgar nosso lugar na música brasileira e que só nos conhecendo e valorizando a nossa cultura é que conseguiremos fazer um som realmente nosso. O coro de crianças foi gravado na comunidade da Vila da Barca em Belém, uma das maiores comunidades em palafitas da América Latina, pra fortalecer o conceito do Elã, conceito que peguei emprestado do filósofo Henri Bergson, que é uma força que inexplicavelmente guia a existência, porém, no mundo do disco, o Elã é o tambor que não deixou a cultura tradicional morrer e perdura até os dias de hoje, algo como um Elã caboco.


03. “PALAVRAS” feat. Jayme Katarro – Nessa música tentei trazer um pouco da raiva que sinto em ser amazônida e ter que me explicar toda vez sobre isso. A fala no meio da música é da minha companheira, Iah Araújo, em que ela fez um texto falando um pouquinho de como os sudestinos se portam em relação a nortistas no geral e a fala do final, em espanhol, expressa muito o que eu tento trazer no disco: “ser amazônico e não ser revolucionário é uma contradição genética”. A música foi composta na residência artística LabSonora e é um desdobramento dessa experiência. Por meio de guitarras e contrabaixo distorcido, tentei representar a terra por meio de um som pesado e uma letra direta. Percebi que as trilhas que fizemos foram umas das coisas que mais me impactaram devido à receptividade da mata, mas também com alguns momentos que ela foi “agressiva” tanto quanto eu tento expressar nessa música. Por isso, trouxe a musicalidade dos Tatuyo que nos receberam de uma forma incrível e a presença do pássaro Capitão do Mato, representando que há visitantes ou “invasores” dependendo da perspectiva. Além disso, a música começa com elementos tradicionais do lundu, um marabaixo, um caxixi e um milheiro mesclado às distorções. Também misturei trap com percussões de afoxé. A letra é uma reflexão que tive que mesmo tendo todas as palavras do mundo para descrever o que foi vivido na residência, seria impossível traduzir por meio de texto falado ou escrito e pensei que a Amazônia também é isso, muito sentir e pouco falar. A música é uma mistura de rock pesado como a música “Da Lama ao Caos” com o trap, música eletrônica e tradicional como está no texto, mas fui além disso e trouxe Jayme pra pesar ainda mais o refrão da música com seus vocais guturais característicos, como se fosse o canto da terra mesmo.


04. “eu sou o ELÔ – Aqui é a repetição do “outro” de ELà que vem com o intuito de abaixar UM POUCO a energia do disco e trazer de forma direta para o ouvinte a mensagem do ELÃ


05. “MITOS Y GRITOS” feat Bruna BG – A música é uma viagem experimental do rock piscodélico ao jazz de “To Pimp a Butterfly”, tudo sobre o acorde de ré menor. As guitarras pesadas foram lapidadas pensando bastante na sonoridade do “Roots”, do Sepultura, mas pensando no meu jeito de tocar. A música foi inspirada na dança dos indígenas Tatuyo e em como eles tocam instrumentos de sopro harmonizando tudo de uma forma que não é nem um pouco convencional. Por isso, meus versos falam sobre o genocídio indígena e o quanto esse assunto me atravessa. Para trazer a sensação dos instrumentos de sopro dos Tatuyo, convidei o saxofonista francês Benoit Crauste que esteve na residência LabSonora para contribuir na faixa. Os versos da Bruna focam muito na experiência que tivemos na residência e trazendo versos psicodélicos sobre a Amazônia. Fico feliz que nunca tinha visto a Bruna ser tão psicodélica e ao mesmo tempo agressiva nos versos dela. Sou fã do trabalho dela há muito tempo e ter compartilhado da residência com ela, me enche de orgulho.


06. “¿brasil PROFUNDO” feat Eliakin Rufino – O beat feito em cima do poema genial de Eliakin tenta expressar o ódio que senti quando vi o vídeo dele no Instagram postado lá pelos idos de 2021. A poesia de Eliakin é cortante e irônica e tentei trazer isso na música com um solo de bateria de Isma e usando também o mesmo sample de “Threads” do Portishead e trazendo mais uma vez o ijexá como ritmo dedicado a Xangô, orixá da justiça, dos raios… como Tupã. A música é como se fosse uma transição para o lado B do disco.


07. “indauê-tupã” feat Patrícia Bastos – “Indauê-tupã” é a primeira música do primeiro disco de Fafá de Belém e apresenta os compositores Ruy Barata e Paulo André Barata para o Brasil. A dupla, de pai e filho, compôs hinos da música paraense e venho com o intuito de renovar a visão sobre a obra desses dois baluartes da cultura amazônica, ao lado de Patrícia Bastos, a maior cantora da Amazônia atualmente. A música é como se fosse um triphop caboco em que tentamos construir uma sonoridade que tentasse mesclar esses dois mundos. Ela abre o lado B do disco e tem o mesmo intuito de “pedir licença” que existe na primeira música do disco, pedindo que Tupã abençoe a entrada nos rios… eu tenho chamado este lado do disco de lado “água”, por ter uma sonoridade mais suave etc então nada mais justo do que pedir ao maior deus indígena que tudo corra bem nos caminhos dessas águas.


08. “cor” – Segundo single do disco e carrega uma letra política e pessoal ao mesmo tempo. Discutir sobre raça na Amazônia ainda é um tema extremamente complexo e é importante saber que não se pode aplicar aqui o que se aplica ao sudeste e em outros lugares do mundo. O branco e o preto aqui são extremos que existem em nossa sociedade, mas não chegam nem perto de definir racialmente o que se passa por aqui. O samba e a cúmbia vêm para mostrar essa dicotomia existente na nossa cidade. O samba como ritmo que teve em suas origens a música preta que acabou sendo incorporada por brancos e a cumbia que é um ritmo fundamental pra definir a musicalidade amazônida.


09. “tambor” feat Íris da Selva – Parceria especialíssima com Íris em que trazemos um carimbó exaltando o maior dos instrumentos de nossa cultura: o curimbó. O curimbó é o centro de tudo, o começo e o fim da nossa identidade, é por onde nos comunicamos e o que guia nossa cultura até hoje. Curimbó é um tambor grave que dá a pulsação nas rodas de carimbó e apenas os mais habilidosos dos grupos se sentem à vontade de tocá-lo… os calos nas mãos têm que estar bastante em dia! O ritmo dessa música é um carimbó, mas sinto muita coisa de Clube da Esquina nela e também algo de “Nude”, do Radiohead, também, acho que é a música mais bonita que já compus e que sorte a minha ter Íris ao meu lado nessa.


10. “<<urybóka>>” – Faixa voz e violão que encerra o disco, composta em Benevides e captada por lá apenas em um gravador Zoom usado para realizar externas de audiovisual, a música é como uma vinheta para concluir e se despedir de quem ouviu até aqui. Música de esperança e finalização inspirada em “Hunter” do Portishead. Não existe finalização nenhuma na música, apenas a masterização.


11. “Coisa de Louco” – Versão de um brega clássico que toca por Belém. Música que me toca infinitamente, tento pensar nela não como uma canção de amor, mas sim a loucura vista da perspectiva de que minha cultura me encantou tanto a ponto de me enlouquecer da melhor maneira possível… como se tivesse cruzado uma linha em que não pudesse mais retornar, um Syd Barrett ou Arnaldo Baptista às avessas, em busca da minha verdade que reside aqui em Belém, lugar onde nasci e finquei meus pés para conseguir realizar esse disco.

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