26º Festival do Rio: Destaque na mostra, “Centro Ilusão” se conecta profundamente e sobretudo com a música atual do Ceará

texto de Leandro Luz

Como se filma uma cidade encantada? Pedro Diógenes, roteirista e diretor de “Centro Ilusão” (2024), registra um território melancólico e efervescente, em estado de som e poesia. Fernando Catatau é Tuca, um músico na casa dos 50 anos de idade frustrado com os rumos que a sua carreira tomou até aquele momento. Na tentativa de se inserir na jovem cena local, ele se candidata a um concurso que irá selecionar alguns artistas para participar de um laboratório sonoro. Ainda que nutra poucas expectativas, Tuca enxerga nesta empreitada a sua última chance para deslanchar musicalmente, e é mergulhado nesse sonho que ele conhece Kaio, interpretado por Bruno Kunk, que almeja mostrar ao mundo as suas composições autorais.

Para os não iniciados na música do Ceará ou que estiveram alheios à banda brasileira mais interessante dos últimos 30 anos, Fernando Catatau é cantor, guitarrista e principal compositor do Cidadão Instigado. Ao lado de Regis Damasceno, Clayton Martin, Rian Batista e Dustan Gallas, Catatau lançou quatro álbuns impecáveis que vão do rock ao brega, da sujeira do experimental ao fino registro pop. No filme, a trajetória do artista se funde com a história da personagem, que vaga pela cidade de Fortaleza desiludido com a vida, com os velhos amores e com a própria música. Até a relação da personagem com a sua guitarra de estimação reflete a biografia do músico, reconhecido pela sua obsessão com o instrumento.

É raro um filme mergulhar tão de cabeça na música como “Centro Ilusão”. Vários números musicais são apresentados na íntegra e a trilha sonora é recheada de canções que costuram as ações das personagens e alimentam a trama poética e narrativamente. Nesse sentido, o trabalho de montagem de Mariana Nunes Gomes é bem corajoso porque finca o pé na intersecção entre a linguagem da música e a do cinema, acreditando piamente nessa plena comunicação. Quando ouvimos “O Tempo” na banda sonora, mesmo em um arranjo diferente da gravação que encerra o gigante disco de 2005, “Cidadão Instigado e o Método Túfo de Experiências”, a música está intrincada com o momento vivido pelo protagonista. Em determinado instante da canção (que por si só já é mágica e capaz de nos transportar imediatamente para dentro de um bar decadente d’uma cidade litorânea no Nordeste), Catatau interrompe a melodia para declamar as seguintes palavras: “Eu nunca pensei que fosse tão difícil eu me entender com tudo isso, ainda mais sem você por perto. Passa o tempo e eu começo a perceber o quanto fui violento com o nosso amor. Hoje eu penso diferente”; essa seção da música dialoga estreitamente com o drama vivido por Tuca, que carrega como uma sombra o relacionamento fracassado com a ex. É tocante perceber como a música e o cinema se retroalimentam o tempo todo aqui, como a ficção própria do cinema se mistura com o delírio e a imaginação característicos do universo musical.

Outro ponto muito explorado pelo filme é o fascínio que a cidade de Fortaleza exerce sobre as personagens. “A nossa felicidade está na nossa terra”, alguém afirma em determinado momento. Com essa atitude, seja no texto ou, melhor ainda, na maneira como enquadra a cidade, Pedro Diógenes deixa evidente o quanto aquele território foi e é decisivo para a construção do seu olhar como artista. De certa maneira, Tuca tem ecos não apenas de seu intérprete, mas também de seu criador. Não à toa a cena mais triste e desoladora de “Centro Ilusão” é a que mostra a personagem vendendo a sua guitarra para, em troca, poder financiar, ainda que anonimamente, a viagem da ex para o exterior. O quão trágico não é ver o protagonista se desfazer de sua guitarra, objeto importante para a sua formação como artista e que o conecta diretamente com os seus ideais? O mais interessante no filme é que, com esse gesto de vender o seu maior sonho, por mais castrador que possa soar, Tuca também se desconecta verdadeiramente de um passado hostil que não o serve mais e se coloca diante de uma encruzilhada que definirá a sua vida dali em diante.

Me surpreende muito um filme como esse ganhar tanto destaque em um festival tão abrangente como o Festival do Rio. Está certo que a carreira que Diógenes vem construindo até aqui no cinema merece todas as atenções, mas “Centro Ilusão” me pareceu um pequeno e ousado delírio que poucos estariam dispostos a aderir. Fico feliz de ter sido contrariado, uma vez que o filme acaba de vencer o prêmio de Melhor Longa-metragem na mostra Novos Rumos.

Partindo de referências do mundo – Scott Walker e Rolling Stones aparecem em cartazes justapostos na parede do quarto de Tuca -, o filme passeia pelo imaginário da música brasileira – camiseta do Ratos de Porão – e se conecta profundamente e sobretudo com a música atual do Ceará, tão ou mais rica quanto deixa transparecer a trilha sonora. Uma dentre várias aparições de artistas dessa cena é Mateus Fazeno Rock, que se apresenta lindamente no filme e sintetiza os novos caminhos que essa música vem tomando nos últimos anos.

“Já tá puxando para o refrão?”, pergunta Kaio, que observa Tuca mostrando no violão uma letra que havia escrito na noite anterior em cima de uma música do amigo. “Não, tô só puxando pra tristeza mesmo”, responde, com essa frase que define a alma de “Centro Ilusão”. Quando finalmente decidem compor juntos, Tuca e Kaio percebem que as suas respectivas gerações estão muito mais próximas do que parece e que, ainda que não seja possível fugir da tristeza, da angústia ou da melancolia, sempre haverá uma fresta aberta para o encantamento da vida.

– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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