26º Festival do Rio: “Avenida Beira-Mar” investiga sentimentos profundos que ganham o mundo por meio de três mulheres

texto de Leandro Luz

A dupla Maju de Paiva e Bernardo Florim escreve e dirige com muita segurança o seu primeiro longa-metragem, “Avenida Beira-Mar”, premiado como melhor direção no Festival Internacional de Cinema de Guadalajara e que agora estreia em terras cariocas na mostra “Première Brasil: Competição Novos Rumos” do Festival do Rio. Recusando o óbvio e abraçando a simplicidade, o filme investiga sentimentos muito profundos que ganham o mundo por meio de três mulheres, Rebeca, Mika e Marta, interpretadas, respectivamente, pelas jovens Milena Pinheiro e Milena Gerassi e pela veterana Andréa Beltrão.

Rebeca é filha de Marta e ambas se mudam para uma antiga casa da família em Piratininga, bairro de classe média de Niterói, no Rio de Janeiro. As duas são muito unidas, mas a pré-adolescência estremece todo e qualquer relacionamento maternal. Soma-se a isso o fato de Marta criar Rebeca sozinha e ter que lidar com uma doença que parece a deixar ainda mais cansada, como se não bastasse a batalha de todos os dias de labuta. Em um diálogo entre Rebeca e a vizinha enxerida da frente, a menina afirma com raiva que o seu pai morreu, e atesta: “não tem homem aqui em casa, não”. Mais tarde, no entanto, entendemos que esse pai está vivo, porém a sua ausência não importa quase nada para a trama para além do peso dramático do abandono, uma escolha que faz bem ao filme e evita caminhos ligeiros.

“Avenida Beira-Mar” é um filme que se importa com os detalhes. Planos, gestos, olhares, acontecimentos, tudo existe com a devida dose de sutileza e exposição. Quando precisa sinalizar que um canivete será importante para a história, está lá o plano detalhe no objeto. Quando quer que o público sinta a complexidade da relação entre mãe e filha, estão lá os olhares e o peso do corpo e da respiração de Andréa Beltrão. A interpretação de Beltrão, aliás, funciona como uma âncora para o filme e nos intriga ao representar Marta como uma mãe comum dos anos 1990, ao mesmo tempo sensível e preocupada, solitária e gentil. Presença fundamental para um filme que depende muito da química entre duas jovens atrizes.

Milena Pinheiro é muito inteligente ao representar a sua Rebeca, às vezes marcando, em função da sua configuração familiar, o quão adulta ela é para a sua idade, às vezes deixando transparecer uma fragilidade bonita e infantil de quem ainda tem o mundo inteiro por desbravar. Rebeca percebe muito cedo na vida que não são apenas os pais que cuidam de seus filhos, ela também entende o quanto é importante para a mãe. Não raro o filme dedica um bom tempo de tela para mostrar ações compartilhadas pelas duas, desde os afazeres domésticos até o descanso merecido na varanda. Apesar das responsabilidades, Rebeca ainda está entrando na adolescência, e é no contato com Mika, interpretada com uma segurança surpreendente por Milena Gerassi, que ela irá descobrir um pouco mais de si mesma e se conectar com os próprios desejos e sonhos que lhe foram involuntariamente negados até então.

Mika é uma menina trans rechaçada por sua comunidade e incompreendida por sua família. Nem por isso o filme retrata apenas a parte violenta de sua vida, ainda que dedique três ou quatro cenas fortes para escancarar essa intolerância – algumas delas funcionam bem, como na vez em que conhecemos os pais de Mika à mesa do jantar, outras demonstram maior fragilidade de encenação, como quando a garota performa uma canção da Gal e é agredida em seguida. O mais interessante, no entanto, é que somos apresentados à Mika não por meio de suas dores, e sim pelo seu hobby favorito: andar de patins pelas ruas do bairro e entrar na casa dos moradores para bisbilhotar os seus pertences. É desse jeito que Rebeca a conhece, mexendo nas roupas íntimas do seu armário, e a relaciona com o barulho dos patins que ouviu na noite anterior. O que se segue é uma sequência de encontros que servirão para germinar uma amizade sincera, representada com toda a calma e cuidado.

Tomando pelo trabalho prévio em curta-metragem de Maju, que já tinha dirigido “Pequenos Animais Sem Dono” (2016) e “Cravo, Lírio e Rosa” (2018), dá para perceber uma marca autoral na aproximação com histórias de formação e com a juventude. Assim como as personagens principais dos curtas, em “Avenida Beira-Mar” acompanhamos ao mesmo tempo uma espécie de amadurecimento das protagonistas e, mais importante ainda, testemunhamos ambas vivendo plenamente. É um trabalho que se dedica à vida tanto quanto a refletir sobre ela, um filme que se importa em fazer a brisa do mar bater em nossos rostos também.

A obra não se exime de falar sobre classe (eu era uma daquelas “pessoas de Maricá e de Alcântara” que iam curtir uma praia em Piratininga nos anos 1990, como vocifera com desdém uma personagem coadjuvante), e nem se recusa a investigar questões como a transfobia e o abandono, mas se concentra mesmo nesses laços e gestos fraternos que dão sentido à vida.

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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.



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