Literatura: “Impostora: Yellowface”, de R.F. Kuang, é um olhar ácido sobre o mercado literário, lugar de fala e apropriação cultural

texto de Gabriel Pinheiro

Quantos escritores alcançam o estrelato? Conseguem conquistar tanto o afago do público quanto da crítica, figurando tanto na lista dos mais vendidos, quanto naquelas de melhores do mês, do ano, da década? De antemão, sabemos que não são muitos – quando comparados ao universo de lançamentos literários que inundam as prateleiras das livrarias mês a mês. O mercado literário é feroz.

A protagonista do novo livro de Rebeca F. Kuang conseguiu furar essa bolha. Após uma estreia morna, seu novo trabalho é um sucesso arrasador. Um daqueles contratos literários de muitos dígitos de adiantamento. Um futuro promissor aguarda a nova sensação da literatura norte-americana. Só tem um problema: ela não escreveu essa história. “Impostora: Yellowface” é um lançamento da Intrínseca com tradução de Yonghui Qio.

A narrativa de “Impostora: Yellowface” se desenvolve a partir de uma dualidade: Athena Liu e June Hayward são como yin-yang, forças tanto opostas quanto complementares. Duas jovens autoras e amigas que se conhecem na Universidade de Yale e buscam um lugar ao sol num mercado cruel. Enquanto tudo parece vir fácil para a primeira – a publicação, as vendas, o sucesso, o dinheiro e a fama – a segunda se vê presa no desinteresse do público, da crítica e do mercado editorial por seu livro de estreia.

Enquanto Athena Liu é de origem sino-americana e se vê metamorfoseada numa espécie de jovem porta-voz da comunidade oriental no país, June Hayward é uma americana branca média que parece não ter muito a dizer – ou, na verdade, não parece ter muitas pessoas interessadas em ouvi-la. Numa curiosa inversão, para June — e muitos outros do mercado literário — Athena é privilegiada por sua cor e raça.

Quando Athena morre num inesperado acidente doméstico, June é a última pessoa a vê-la com vida. Após a morte da amiga, Hayward deixa a sua casa carregando consigo não só o trauma pela morte de Liu, mas também um manuscrito recém-concluído daquela jovem escritora em ascensão: sua obra derradeira. É a partir desse manuscrito – um livro que une ficção, experimentação e uma longa pesquisa histórica para dizer sobre trabalhadores chineses explorados durante a Primeira Guerra Mundial – que a vida de June Hayward entra num caminho sem volta rumo ao estrelato literário possibilitado apenas por um verdadeiro best seller. “O último front”, o manuscrito de Athena, é publicado por June como se fosse de sua autoria.

“Yellowface”, literalmente “cara amarela” em português, é o uso de maquiagem no meio artístico – no teatro e no cinema, sobretudo – por artistas brancos ao representarem personagens de origem leste-asiática, de países como o Japão, a China e a Coreia do Sul. Uma maneira histórica de silenciamento e exclusão dessas comunidades dentro de suas próprias representações no campo artístico. No romance de R.F. Kuang, o termo ganha novas nuances, levando sua relação com o racismo e o silenciamento de comunidades minoritárias para dentro do mercado literário — um espaço, supostamente, diverso e aberto ao diferente.

June Hayward, ou, melhor, Juniper Song — é esse o nome, espécie de alter-ego, que ela constrói para si a partir da publicação do manuscrito usurpado da falecida amiga, carregando certa ambiguidade e estranhamento, por remeter a um orientalismo pertencente àquela que escreveu à obra, mas não àquela que a publicou — é uma personagem complexa. Todo narrado a partir do seu ponto de vista em primeira pessoa, “Impostora: Yellowface” mergulha no psicológico da jovem escritora, num verdadeiro processo de autoconvencimento sobre a legitimidade de suas escolhas. Enquanto convence a si mesma, ela busca a cumplicidade do leitor.

“Impostora: Yellowface” é um daqueles livros que só poderiam ter sido escritos por alguém que, em alguma medida, tenha passado por experiências próximas àquelas descritas ao longo de suas páginas. No caso, entre outras, as vicissitudes do mercado literário e o racismo inerente às relações ali desenvolvidas. R. F. Kuang é uma autora sino-americana, com obras que lidam com temas como o racismo e o colonialismo, que figuraram nas listas dos mais vendidos e venceram importantes prêmios literários como o Locus, o Nebula e o British Book Award.

Um olhar ácido para o mercado literário e suas intrínsecas relações com questões de identidade, diversidade, autoria, racismo, lugar de fala e apropriação cultural, “Impostora: Yellowface” é uma leitura ágil e envolvente, marcando a versatilidade da escrita de R. F. Kuang, num texto que flerta com o suspense psicológico e uma narradora que nos coloca a todo momento em dúvida acerca de suas intenções — e, até mesmo, de sua sanidade.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel



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