texto de Leandro Luz
Qual é a medida do sucesso? Tanto Rita quanto Emilia, as duas protagonistas de “Emilia Pérez” (Jacques Audiard, 2024), perseguem grandes objetivos de vida: a primeira (Zoe Saldaña) é uma advogada frustrada, que não consegue aplicar a sua impecável formação acadêmica em algo que a faça feliz; a segunda (Karla Sofía Gascón) é uma mulher trans que sente a urgência em abandonar a vida como chefe do tráfico. Rita não tem exatamente um sonho palpável, mas fica evidente a sua insatisfação profissional. Emilia nos é apresentada duas vezes, a primeira como um criminoso ameaçador chamado Manitas del Monte, capaz das maiores atrocidades, a segunda como uma elegante mexicana que frequenta a alta classe de Londres e se torna uma benfeitora em sua cidade natal.
É bastante curiosa a forma como Audiard constroi a sua narrativa, calcada em números musicais que colaboram para a apresentação dos dramas e dos conflitos das personagens e estabelecem a atmosfera desejada para cada cena. O movimento que o filme faz é espiralar, e cada acontecimento influencia o próximo para colocar o espectador sempre em estado de assombro. Audiard é um cineasta francês que constantemente se interessa por personagens de outras culturas. Foi assim com “Ferrugem e Osso” (2012), “Dheepan” (2015) e “Os Irmãos Sisters” (2018). Em “Emilia Pérez”, ele aproveita bem a tradição do musical e do melodrama para contar uma história repleta de reviravoltas. Escorrega, justamente, por querer abraçar o mundo.
Está certo que o grande trunfo do filme é a aliança estabelecida entre as personagens femininas, mas é também essa relação que evidencia a hesitação entre protagonismos que não contribui para o desenvolvimento da trama, que ora circula por Rita, ora se pauta no arco de Emilia. Nenhuma, no entanto, se firma como protagonista, tornando frágil os seus movimentos internos e as suas ações visíveis. Rita aparece e some como se não fosse a personagem na qual o filme confia para conduzir o espectador e fazê-lo mergulhar nas dores e delícias do universo criado. Saldaña, estrela de grandes franquias blockbusters como “Star Trek”, “Avatar” e “Guardiões da Galáxia” empresta um tom farsesco para a sua personagem, que oscila entre a pressão de ser esse fio condutor principal – dança, canta, sofre, se deslumbra – e a falta de função narrativa. Ela praticamente some em determinado momento, quando Emilia cresce e dá a entender que irá sustentar tudo dali para o final. De fato, Karla Sofía Gascón rouba as atenções, sobretudo quando contracena com Selena Gomez, que é relegada ao papel de escada.
Falo muito das personagens e das atrizes porque isso parece ser o real interesse de Audiard com o seu filme. Os demais elementos narrativos estão sempre servindo ao jogo da atuação, como na formidável cena em que Emilia (ainda apresentada como Manitas) sequestra e seduz Rita para que ela o ajude em sua saga para viabilizar a cirurgia de redesignação sexual. O design de som e a música, que neste momento é cantada por Gascón ao estilo “spoken word”, conduzem bem o ritmo da montagem e fazem deste o melhor momento do longa-metragem. Uma pena que os números musicais percam o fôlego do meio para o final.
A montagem de “Emilia Pérez” é marcada por uma divisão geográfica, projetada na tela com o auxílio de cartelas, que marca a circulação em países como Tailândia, Israel, Inglaterra e México. Estranhamente, toda a gravação foi realizada dentro de um estúdio em Paris. De certa maneira, essa contradição define bem o filme, pois Audiard está a todo momento correndo atrás do artifício, da centelha que moverá o drama um passinho adiante a cada nova coreografia ou emoção capturada.
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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.