texto de Renan Guerra
A “Vila Mathusa” que dá título ao livro de estreia da escritora zênite astra existe no coração da capital de São Paulo, em algum pequeno beco da Boca do Lixo, região de histórica degradação entre a Praça da República e o bairro da Luz, no centro da cidade. Nessa espécie de pequena fenda espaço-temporal passeamos no tempo ao lado das personagens trans criadas por zênite, indo da companhia de artistas e prostitutas nos complicados tempos ditatoriais até nebulosas histórias durante a pandemia de HIV/AIDS, passando por delicadas histórias sobre romances, encontros e descobertas de si mesmo em tempos mais modernos, tudo isso construindo uma colcha de retalhos que desenvolve e possibilita diferentes maneiras de se pensar uma existência mais plural dentro das cidades.
“Vila Mathusa” é essencialmente um livro de contos, sua narrativa funciona de forma independente e cada história tem sustentação própria, porém, ainda assim, cada narrativa vai contribuindo para a construção de um panorama mais amplo dos personagens, o que cria uma costura muito sólida de todas as histórias, que se aproximam em temáticas e personagens ao mesmo tempo em que se distanciam em temporalidade e liberdade. É como num filme de Robert Altman, em que cada personagem vai nos ajudando a construir um panorama de possibilidades e de diversidade. E essa multiplicidade é que possibilita para a autora uma fluidez para navegar entre histórias que vão da infância de pessoas trans, passando pela descoberta e pelos preconceitos, até o envelhecimento e a experiência da terceira idade, com todos as nuances entre companheirismo e solidão, entre medo e sabedoria.
Cada personagem que passa pelas páginas de “Vila Mathusa” nos ajuda a compor um retrato múltiplo da existência de pessoas trans, nos lembrando que elas não são únicas e que suas narrativas passam por descobertas, medos e angústias muito particulares – é claro que há narrativas que se entrecruzam e experiências que se aproximam, mas é na unicidade de cada narrativa que se baseia todo o processo de amadurecimento e desabrochar de uma pessoa trans. Nas páginas escritas por zênite, essas narrativas podem vir do medo da violência e do preconceito, como podem surgir da dificuldade de aceitação dentro de seu próprio lar, mas também nascem do compreensão mútua entre pessoas trans, do apoio despendido nessa existência coletiva e na criação de espaços de segurança e acolhimento – algo aqui representado de forma física nesse cenário da Vila Mathusa.
Tudo isso se desenvolve de maneira rica e interessante pela escrita fluida e delicada de zênite astra, que tem a sabedoria de conseguir construir um texto que é de fácil leitura, de uma aparente simplicidade, mas que esconde uma complexidade em seu olhar sobre o mundo, uma amplitude na forma de descrever e captar sensações, o que provoca no leitor uma experiência de completo mergulho nesse universo. E aí queremos passear pelas histórias ao lado de Lui, Ravi, Vita, Amilton, Mona Monique, Dinah Dinamite e outros. Dinah Dinamite, aliás, é uma das personagens mais ricas do livro, como ela aparece em diferentes momentos da história e como ela consegue construir uma espécie de homenagem a tantas e tantos que vieram antes, que deram a cara à tapa e que morreram à míngua, sob o rancor do ódio que assola nossa sociedade.
Pelas páginas de “Vila Mathusa” fazemos um passeio pelas figuras ditas marginais da cidade de São Paulo e, assim, mergulhamos em um universo recheado de afeto, de carinho, de cuidado e de apoio. A escrita de zênite astra é um respiro de coragem e força que nos lembra que temos que, de algum modo, ainda cutucar as nossas feridas e dores para que elas possam sarar de forma mais poderosa.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.