Balanço: Com melhor line-up do ano no país, o paraense Se Rasgum 2024 é festival pra quem gosta de música

texto e vídeos de Bruno Capelas
fotos de Marcelo Costa e Equipe Se Rasgum

No segundo final de semana de setembro, uma série de artistas brasileiros e internacionais subiram a diferentes palcos para fazer um dos melhores festivais do ano – e se você pensou no Rock in Rio, caro leitor, está redondamente enganado: a honra se deve à 19ª edição do Se Rasgum, festival já tradicional no calendário da capital paraense Belém. Por quatro dias, sendo dois deles gratuitos, o evento não só exibiu o melhor line-up de um festival nacional em 2024, mas também uma amostra perfeita da multiplicidade da canção. Ou, para fazer mais um gracejo: ao contrário de certos espaços tomados por ativações publicitárias, rodas gigantes e tirolesas, eis aqui um festival para quem gosta de música.

Foto de Liliane Moreira / Se Rasgum

Realizado entre os dias 11 e 14 de setembro de 2024, o Se Rasgum teve de tudo um pouco: de carimbó e hip hop à chanson francesa e música brasileira da melhor qualidade, passando por shoegaze, rock setentista, rap, trap e veteranos do reggae. O mais interessante, porém, é que a mistura não soa indigesta, mas sim um banquete para um público local interessado em conferir e conhecer gêneros diferentes. Além disso, é um exercício de diversidade, outra marca registrada do festival ao longo dos anos.

Foto de Bruno Carachesti

Ao contrário da edição passada, que teve dois dias gratuitos pela cidade e dois dias no gigantesco Espaço Náutico Marine Club, a iteração 2024 do Se Rasgum foi mais múltipla. A abertura aconteceu no Music Park, casa de shows próxima à turística Estação das Docas; depois, o já tradicional dia no cartão postal do Pier das Onze Janelas. Boa novidade de 2024, o teatro Margarida Schivasappa recebeu na sexta-feira,13, shows de nomes como a francesa Clair e Jards Macalé, além da dupla Andreia e Olivar resgatando a obra do compositor paraense Walter Freitas. E foi só no último dia, à beira do rio Guajará, que o festival saiu do formato de três ou quatro shows por noite para virar maratona musical no NaBêra Gastronomia e Cultura, indo de Novos Baianos a Marcia Griffiths, de Ana Frango Elétrico aos americanos do DIIV, passando por cantoras locais como Natália Matos e Valéria Paiva ou pelas argentinas do Fin del Mundo.

Foto de Liliane Moreira / Se Rasgum

Se de um lado a variação de locais deu aos espectadores a possibilidade de entender diferentes formatos de apresentação e fez os forasteiros rodarem a cidade, do outro o Se Rasgum teve menos cara de festival – naquela ideia do público saber onde está cada palco e cada coisa todo ano. Além disso, vale aqui o elogio ao espaço do NaBêra: além da paisagem paradisíaca à beira do rio, com belo pôr-do-sol, o local ainda é mais próximo do centro da cidade e comportou bem os presentes na maior parte do tempo, embora a lotação tenha chegado próxima ao limite entre os shows de Márcia Griffiths e Novos Baianos. Fosse o público mais nervoso com os atrasos, a situação poderia ter fugido do controle, um ponto de atenção para próximos eventos.

Sereias do Mar / Foto de Marcelo Costa

Aliás, é importante falar nos atrasos: seguidos problemas nos palcos fizeram diversas atrações demorarem para se apresentar no último dia do festival, o que empurrou o evento madrugada adentro. Filipe Catto, por exemplo, deveria cantar por volta das 23h, mas só chegou quase duas horas e meia depois, num retardo que cansou o público e frustrou os planos de muita gente de conferir os últimos shows da noite, como a homenagem a Tonny Brasil e a cantora local Valéria Paiva, rainha das aparelhagens. É outro ponto de atenção que vale ser repensado para o futuro.

Foto de Marcelo Costa

Ainda no tema infraestrutura, valem diversos elogios ao Se Rasgum: do preço acessível de bebidas e comidas à variedade de opções, indo dos clássicos hambúrguer e hot dog à vibrante gastronomia local, passando pela honesta cerveja local Tijuca, que descia feito água em meio ao calor (R$ 8, a latinha de 269 ml). Outro ponto positivo é a integração do evento com a cidade: no dia do Pier das Onze Janelas, a venda de bebidas e comidas era feita por ambulantes e barracas na porta do evento, integrando em vez de segregar – e quem esteve lá pode até comer um valoroso vatapá paraense por R$ 15.

Foto de Liliane Moreira / Se Rasgum

Assim como fizemos na cobertura do Coala Festival 2024, decidimos destacar aqui no Se Rasgum 10 shows que marcaram a 19ª edição do evento. Não são necessariamente os melhores ou piores, mas sim uma amostra da variedade e da potência de um festival que, mesmo com recursos por vezes escassos, se desdobrou para fazer uma empreitada que deveria ser parada obrigatória para todo fã de música no Brasil. Ao longo dos textos, o leitor verá que há pequenos comentários pinçados sobre outras apresentações – simplesmente porque o Se Rasgum transborda música e quem tem limite é município. Para completar, há ainda um top 5 da entourage Scream & Yell no festival belenense. Prepare seu açaí e venha com a gente.


Molho Negro e Jair Naves (quarta-feira, Music Park, 22h)

Desde o anúncio do cartaz do Se Rasgum, o encontro do Molho Negro com Jair Naves era um dos momentos mais aguardados do festival. É fácil de entender: de um lado, o trio paraense, embora radicado em São Paulo, é um dos principais representantes do rock local na atualidade. Jair, por sua vez, tem colhido em 2024 os frutos de seu longevo trabalho com o Ludovic e em carreira solo, gozando o status de patrono da música alternativa brasileira. Mais que isso, ele finalmente se apresentaria em Belém pela primeira vez. Para começar a festa no Music Park, à beira do rio Guajará, o Molho Negro matou as saudades de casa relembrando lados-B (“Contra”) e porradas como a weezeriana “O Jeito de Errar”. Mesmo tímido, o guitarrista João Lemos mostrou postura rara em tempos de bandas que olham para o pé e não para o público, invocando rodas e gritos ao jogar em casa. Com poucos acordes, ele fez o público berrar o refrão de “Black Rebel Marambaia Club”, apertando os botões da plateia como quem lança um golpe no videogame. “Ok, vocês destravaram essa música”, brincou, antes de atacar a canção por completo para delírio dos presentes. Na sequência, Jair veio à cena para realizar um sonho de adolescência de Lemos: ser a banda de apoio do vocalista do Ludovic em números como “Desova”, “Janeiro Continua Sendo O Pior dos Meses” e “Vane, Vane, Vane”. Se ainda não era o bastante, a banda paraense chamou uma porção de amigos pro palco para a zona de “Rui Barbosa”, enquanto Jair fazia um vigoroso duelo de baixos com Raony Pinheiro. Para encerrar um show de meros 40 minutos, teve ainda “23”, que deixou todo mundo com um gostinho de quero mais. E pra quem não chegou a tempo em Belém, só basta dizer uma coisa: “azar o seu, querida”.


Céu (quarta-feira, Music Park, 0h)

Difícil dizer o que gerava mais calor quando Céu subiu ao palco do Music Park para encerrar a primeira noite do Se Rasgum: a devoção do público, a atmosfera de Belém ou o belíssimo vestido vermelho da cantora, modelito da nova turnê. Muito aguardada após seis anos longe da capital paraense, Céu veio à cidade para apresentar uma das primeiras datas da turnê de “Novela”, álbum que lançou em abril (presente na lista da APCA do primeiro semestre) e teve nove de suas doze canções executadas. Logo na abertura, foram quatro: “Raiou”, “Cremosa”, “Gerando na Alta” e “Into My Novela”, cujos títulos servem como demonstração da lírica meio esquisita empenhada pela cantora no trabalho. Se é necessária outra contraprova, vale ainda citar “Crushinho”, bela canção de amor afetada justamente pelo uso da expressão canhestra que lhe dá nome. Mas dando argumento pra quem acredita que a música importa mais do que a letra, o show foi ótimo: com belo canto, carisma e uma banda que lhe dá pleno suporte, Céu faz um espetáculo charmosíssimo, aproveitando-se justamente das brincadeiras e do drama que o universo simbólico do disco lhe dá, além de resgatar canções como “Perfume do Invisível” (de “Tropix”) e “Malemolência” (da estreia de 2006) unida ao clássico “Mora na Filosofia”, de Monsueto. (Se vale o adendo, é uma pena que “Chegar em Mim” esteja fora do repertório). Taí um show que merece ser acompanhado conforme evolui na estrada, então não perca os próximos capítulos – antes de Céu, vale ainda notar que a brasiliense Ypu teve a difícil missão de se apresentar ensanduichada entre as duas grandes atrações da noite. Uma das bandas mais promissoras dos últimos tempos, o grupo capitaneado por Ayla Gresta (voz e trompete) e Gustavo Halfeld (guitarra) enfrentou dificuldade para repetir a performance bem-sucedida mostrada no Goiânia Noise, em abril, com um público menos atento ao som viajante. Por outro lado, é nesse tipo de situação que uma banda cria casca ao longo dos anos – o que reforça a importância dos festivais, como se alguém ainda tivesse dúvida sobre o tema.


Death Brega (quinta-feira, Pier das Onze Janelas, 22h)

Se o poeta já disse que a vida é a arte do encontro, mesmo com tanto desencontro, talvez não tenha havido melhor maneira de celebrar a vida na segunda noite do Se Rasgum do que assistir ao show do Death Brega – o encontro de Elder Effe, da baixista Inesita e da banda Turbo, três dignos representantes do rock na terra do rock doido – que, ressalte-se, de guitarra-baixo-bateria tem muito pouco. Primeiro, quem veio ao palco foi Inesita, cujos temas instrumentais, entre o surf-rock e certo noise, serviram como bom aquecimento para o que viria a seguir. Depois, foi a vez de Elder Effe, anunciado por Inesita como “príncipe de Castanhal”, relembrando tanto canções da icônica banda local Suzana Flag quanto de sua carreira solo. Quem chegou por último foi a Turbo, mesclando o power pop de Elder com certa postura punk, em um resultado sonoro divertidíssimo – vale a pena conferir porradas como “Calor Senegalês”, apresentada em meio a amplificadores cobertos pelas bandeiras do Pará. Em meio a tudo isso, talvez o momento mais punk do festival surgiu quando um Chris Martin dublado por inteligência artificial anunciou que o Death Brega seria a banda de abertura do show do Coldplay previsto para Belém em 2025, quando a cidade receberá a COP 30. Depois da evidente sacanagem, todos os músicos irromperam em “Rato City”, de Elder, com uma verve punk que serve como símbolo do fato de que, a poucas quadras do turístico Pier das Onze Janelas, há quarteirões degradados dos mais diferentes níveis. Na manhã seguinte, foi difícil não acordar com a melodia na cabeça: “cuidado, acredite: ninguém está seguro na Rato City!”.


Carlinhos Carneiro e os Excelentes Animais (quinta, Pier das Onze Janelas, 23h)

A nostalgia, essa pantera: há mais de duas décadas, um grupo de gaúchos meio malucos venceu o KLB e o Falamansa no VMB de 2001 com uma das canções de amor mais incríveis do rock brasileiro: “Melissa”. “Eu fiz essa meio virado de ácido, quando o Rossato (primeiro guitarrista da banda) chegou com uma colega na aula de sábado, que reclamou que o namorado dela não queria levar ela pra praia”, disse Carlinhos Carneiro a certa altura de seu show em Belém. “Eu disse: ‘se tu quiser que eu te leve, eu aprendo a dirigir’. Ela nem deu bola, mas eu fiz essa música e conheci um milhão de amigos pelo mundo.” Mais do que apenas servir como uma boa história, o momento vale como polaroide exata do que foi a apresentação de Carlinhos Carneiro no belo Pier das Onze Janelas: relembrando os 25 anos da Bidê ou Balde, a tal banda do começo do parágrafo, ele não só pulou, suou, fez piadas e cantou grandes canções, mas também abriu o coração para contar as histórias dessas pérolas pop, insistindo que elas não sejam perdidas pelo tempo. “Ainda bem que tem gente que conhece as nossas músicas e gosta. É um prazer tocar na cidade de vocês, que é tão longe da nossa”, agradeceu o músico, em meio a um caminhão de hits (a primeira vez da Bidê em Belém também foi no Se Rasgum… em 2011). Respire fundo: teve “É Preciso Dar Vazão aos Sentimentos”, “Microondas”, “Gerson”, “Matelassê”, “Buddy Holly”, “Tudo Bem” e “Cores Bonitas” numa sequência irrepreensível. O combo só não foi maior porque Carlinhos fez questão de lembrar das enchentes do RS e (se) emocionar com a temporã “Mesma Cidade”. Fôlego retomado, lágrimas nos olhos, veio aí outra fileira difícil de criticar: “Bromélias”, “Spaceball” (entremeada a “Music” e “Express Yourself”, de Madonna), a já citada “Melissa”, “Me Deixa Desafinar” e a baladaça “Mesmo Que Mude”, com Carlinhos empoleirado na grade do palco pronto para abraçar o público. É sempre amor, mas antes que tudo acabasse, ainda deu tempo no bis de uma balada escrita por Rodrigo Pilla, “Fazer Tudo a Pé”, ser iluminada com celulares e isqueiros, e de outra porradaria nonsense maravilhosa: “K7”. Pena que o tempo acabou, porque a vontade era de fazer que esse show fosse “continuous play” por toda a noite.


Clair (sexta-feira, Teatro Margarida Schivasappa, 21h)

Há quem pense que a vida de artista é só glamour. Mas essa é uma fantasia, e como bem disse a francesa Clair, “entre a realidade e a fantasia, eu prefiro a realidade”. Ela sentiu literalmente na pele o que disse: recém-chegada de um voo Paris-Belém, a cantora teve menos de duas horas para pousar e subir ao palco do Teatro Margarida Schivasappa com seu violão. “Devo estar cheirando muito mal e estou com o fuso trocado. São tipo 3h da manhã para mim, então espero que vocês me perdoem”, brincou a francesa logo no início de sua apresentação, um dos momentos mais curiosos do Se Rasgum 2024 – e que talvez sejam uma daquelas polaroides que por si só justificam a experiência de um festival. Afinal, em que outro lugar poderia se ver uma loira francesa tocando doces melodias em seu violão, fazendo biquinho e imitando barulhos de gafanhotos ou dedicando odes a joaninhas? Pois foi isso o que aconteceu, em um espetáculo terrivelmente adorável, que remete àquela safra de cantoras francesas como Françoise Hardy e Brigitte Bardot. Desta última, aliás, Clair ainda pinçou uma curiosa canção: “Tu Veux Ou Tu Veux Pas”, versão em francês do clássico “Nem Vem Que Não Tem”, de Wilson Simonal (relembre essa história). Pouco acostumada a tocar solo, a parisiense brincou com sua cidade (“é a cidade do amor, mas também da merda de cachorro”) e com sua falta de intimidade com o violão, que por vezes desafinou ao longo da apresentação. Não importou muito: com seu charme, não foram poucos os presentes que suspiraram pela loirinha e sonharam com a chance de lhe dizer “voulez vous coucher avec moi” – mesmo sem banho.


Jards Macalé (sexta-feira, Teatro Margarida Schivasappa, 22h)

“Era para Tom Zé estar aqui, mas ele ficou doentinho e eu terei a honra de substituí-lo”. Foi assim que Jards Macalé, camisa listrada colorida à moda do Castelo Rá-Tim-Bum e violão em punho, subiu ao palco do Teatro Margarida Schivasappa para encerrar a terceira noite do Se Rasgum 2024. Do alto de seus 81 anos, Jards fez uma daquelas apresentações dignas de serem lembradas em mesa de bar durante muito tempo, disparando com duas do clássico álbum homônimo de 1972 – “Farinha do Desprezo” e “Revendo Amigos”. Na sequência, vieram “Boneca Semiótica” e “Anjo Exterminado”, ambas de “Aprender a Nadar”, de 1974, fazendo a cama para o já clássico medley de dois hinos da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: “Mal Secreto” lado a lado com “Corcovado”. Voltar a Belém fez o fio da memória chegar ao parceiro Moreira da Silva, com quem tocou na capital paraense pelo Projeto Pixinguinha nos anos 1980, o que lhe fez irromper pelo delicioso samba “Acertei no Milhar”. A memória também passeou por amigos que lhe deixaram nos últimos anos, como Gal Costa e João Gilberto, a quem Macalé dedicou a instrumental “Um Abraço do João”. Antes, para descansar as mãos que ainda se recuperam após uma queda sofrida recentemente, Jards contou a incrível história que inspirou a faixa, quando encontrou o número secreto de telefone de João no meio da pandemia, acendeu um baseado e ligou pro amigo (já falecido). “Vai que ele atende?”, brincou o mestre, cuja única incursão ao repertório mais recente foi “Mistérios do Nosso Amor”, gravada ao lado de Maria Bethânia. “Não sou Bethânia, que aliás está me traindo com Caetano Veloso”, gracejou Jards, que também se declarou para a tradutora de Libras e, ao final, teve de correr com o pouco tempo disponível. “Tenho dez minutos para oito músicas. Não vai dar!”, sacaneou, antes de tocar três petardos pra ninguém botar defeito: “Movimento dos Barcos”, “Soluços” e, claro, “Vapor Barato”. Uma daquelas noites inesquecíveis, pra desejar que o Dia da Marmota existisse.


Ana Frango Elétrico (sábado, Na Bêra Gastronomia & Cultura, 19h20*)

No planejamento inicial do Se Rasgum, Ana Frango Elétrico deveria ter uma missão nobre no festival: tocar às 18h, bem na hora do pôr-do-sol à beira do Rio Guajará, depois da abertura do grupo de carimbó Sereias do Mar, da rapper Negrabi e da reunião da boa surpresa local O Cinza. Mais que apenas aproveitar a vantagem da natureza, Ana era parte da estratégia do festival de atrair o público paraense a chegar cedo no festival, enquanto o costume da cidade é sair tarde de casa. Deu certo, mas o problema é que o festival já começou com mais de uma hora de atraso, e Ana demorou ainda mais quarenta minutos para começar a se apresentar, iniciando um efeito dominó que levaria a noite a ser encerrada lá pelas 6h da manhã. Quando finalmente chegou à ribalta, a cantora carioca (artista mais pedida pelo público do festival) fez um show muito aplaudido pelo público, muito bem tocado, mas repleto de clichês – dos grooves roubados de velhos discos de Lincoln Olivetti à militância rasa como um pires de dizer um simples “Amazônia em pé”, enquanto o público gritava um caloroso “endoida, caralho”, pronto para devorar a cantora tal qual Caetano a Leonardo di Caprio. Ao adequar canções de seus discos anteriores nos arranjos funkeados da atual turnê, Ana fez músicas como a charmosa e psicodélica “Tem Certeza?” perderem toda a graça, e nem mesmo a excelente “Insista em Mim”, hit de “Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua”, funcionou. Pior que isso: ao cantar de maneira torta, ignorando a força de ter um público comendo na sua mão, Ana mostra que aprendeu errado a lição de Jards Macalé, que assistia a discípula na área VIP: enquanto Macalé entorta o canto como aula de expressão para ressaltar o incômodo de suas letras, o que Ana faz é desleixo ao largar versos pela metade. Como diria Paulo Ricardo: que desperdício.


Fin del Mundo (sábado, Na Bêra Gastronomia & Cultura, 20h*)

Que buena onda, amigos: tocando pela segunda vez no Brasil, após uma primeira turnê em março, as argentinas do Fin del Mundo fizeram um dos shows mais carismáticos do Se Rasgum. Desde o início da apresentação, Lucía Masnatta (guitarra e voz), Yanina Silva (baixo e vocais), Julieta Heredia (guitarra) e Julieta Limia (bateria) não só se divertiram no festival, como também souberam cativar os presentes para uma festa shoegazer deliciosa, com tudo que o gênero tem direito: jogos de guitarra, mão pesada na bateria e um baixo delicioso conduzindo melodias doces, cujas letras se aproveitam do caráter sintético da língua hermana para um charme especial. Alternando espanhol e portunhol na hora de falar com o público, elas mostraram ainda que a vida na estrada nos últimos meses lhes fez bem demais, com um crescimento e uma postura de palco invejáveis – algo que ficou evidente nas execuções emocionantes de “Vivimos Lejos”, “El Próximo Verano” ou “Hacia Los Bosques”, só pra citar três exemplos. Mais do que isso, o quarteto deixou bem claro que tem tudo para levar o bom nome do rock latino a novos patamares. Do frio da Patagônia, elas precisaram só de quarenta minutos para derreter os corações dos belenenses — e talvez o próximo seja o seu. Se o mundo está mesmo acabando (e parece que está), pelo menos temos a trilha sonora perfeita. 


DIIV (sábado, Na Bêra Gastronomia & Cultura, 20h40*)

Donos de um dos discos mais interessantes de 2024, o delicioso “Frog in Boiling Water”, os americanos do DIIV foram uma grata surpresa ao aparecerem no line-up do Se Rasgum, repetindo uma dobradinha entre o festival paraense e a Balaclava Records – em 2023, o grupo da vez foi o Thus Love, que fez um belo show em Belém e depois voou para São Paulo para tocar no Balaclava Fest. Com o guitarrista e vocalista Zachary Cole Smith usando uma camiseta com a bandeira do Estado do Pará, o DIIV começou sua apresentação tão logo as Fin del Mundo deixaram o último ruído soar no outro palco. Foi a continuidade de uma dobradinha viajante que poucos festivais no mundo têm a sorte de ter: com ajuda de um som excelente e altíssimo, o quarteto abriu os trabalhos com “In Amber”, dando início a um show tão pop quanto claustrofóbico, capaz de dar até revertério de tão alto e remexido. Vale a comparação: enquanto as Fin del Mundo conquistam pelo carisma, o DIIV fica mais afastado, de um jeito quase introvertido, a despeito dos olhares malucos do guitarrista Andrew Bailey, de fitas no cabelo, ou das camas vocais do baixista Colin Caulfield. É um espetáculo psicodélico e surrealista, mas que de forma alguma deixa o público distante de sua proposta – e olha que vários momentos do concerto são cheios de vinhetas em vídeo meio nonsense, meio malucas. Um show tão bom que a memória até duvida se o registro foi mesmo real ou se foi alguma invenção da cabeça. Endoida, caralho.


Filipe Catto (domingo, Na Bêra Gastronomia & Cultura, 1h20*)

Filipe Catto deveria subir ao palco pelas 23h, mas só chegou mesmo depois da 1h da manhã. Após o atraso inicial e o ocorrido antes do show de Ana Frango Elétrico, houve ainda outro, que durou cerca de 40 minutos para os ajustes necessários para a rainha do reggae Marcia Griffiths. Quando finalmente entrou na ribalta, a jamaicana fez um show cativante não só para a nação regueira, mas para todos os presentes, que se divertiram com clássicos como “Don’t Let Me Down” e “Three Little Birds”. Quem resistiu bravamente, porém, foi brindado com um show bonito e poderoso de Filipe Catto, que passou longe da releitura em papel carbono, a despeito do repertório da cantora ser todo dedicado à obra de Gal Costa, dentro da turnê do disco “Belezas São Coisas Acesas Por Dentro” – verso tirado de “Lágrimas Negras”, que abriu a apresentação colada com “Tigresa”. Mal entrou no tablado, Filipe já causou ignição instantânea no público, em uma performance que beirou o sublime, passeando pelo lado mais experimental (no medley de “Joia” com “Oração de Mãe Menininha”) e pelo mais cancioneiro (“Nada Mais”) do repertório da artista baiana. “Eu não sou uma pessoa, eu sou uma banda”, disse Filipe a certa altura – e é verdade. A despeito de tocar guitarra em raros momentos do show, como em “Negro Amor”, parte da magia da apresentação se deve à presença de Fábio Pinczowski (guitarra), Michele Abu (bateria) e Gabriel Bubu Mayall (baixo): juntos, os três fazem uma camada que frequenta o noise, o pós-punk, a psicodelia e a porrada pura que serve como cama perfeita para Filipe brilhar, dançar, estender seus longos braços e cativar o público do começo ao fim, em um brilho que remeteu, em muitos momentos, à presença de Ney Matogrosso. Como se não bastasse, Filipe também fez o melhor discurso político da noite, falando sobre as eleições, louvando a Amazônia e pedindo união: “aqui a gente não está fraco, a gente está junto – e quando a gente está junto a gente é mais forte”. Um showzaço, encerrado com uma das trincas mais simbólicas de Gal: “Vapor Barato”, “Divino Maravilhoso” e “Dê um Rolê”, esta última fazendo a cama perfeita para que os Novos Baianos entrassem em cena no palco ao lado. Pena que o trio de Baby, Pepeu e Paulinho Boca de Cantor tenha sido afetado não só pelo avançado da noite, mas por um som claudicante, que deixou Baby e o público distraídos, muito abaixo da expectativa de quem queria ver os novos baianos curtirem numa boa.


Foto de/ Se Rasgum

RANKING SCREAM & YELL – MELHORES SHOWS

Adriano Costa – Coisa Pop
1 – Molho Negro + Jair Naves
2 – DIIV
3 – Carlinhos Carneiro
4 – Fin del Mundo
5 – Céu

Alejandro Mercado – A Escotilha
1 – Filipe Catto
2 – Fin Del Mundo
3 – Carlinhos Carneiro
4 – DIIV
5 – Molho Negro + Jair Naves

Bruno Capelas – Scream & Yell / Programa de Indie
1 – Jards Macalé
2 – Filipe Catto
3 – Fin del Mundo
4 – DIIV
5 – Carlinhos Carneiro

Igor Muller – Programa de Indie
1 – DIIV
2 – Fin del Mundo
3 – Jards Macalé
4 – Carlinhos Carneiro
5 – Molho Negro + Jair Naves

Marcelo Costa – Scream & Yell
1 – Jards Macalé
2 – Carlinhos Carneiro
3 – DIIV
4 – Fin del Mundo
5 – Molho Negro + Jair Naves

Ranking FINAL S&Y
1) Fin del Mundo – 15 pontos, 5 votos
2) DIIV – 14 pontos, 5 votos
3) Carlinhos Carneiro – 13 pontos, 5 votos
4) Jards Macalé – 13 pontos, 3 votos
5) Filipe Catto – 9 pontos, 2 votos
6) Molho Negro – 8 pontos, 3 votos
7) Céu – 1 ponto, 1 voto

PS: A reportagem do Scream & Yell gostaria de agradecer à organização do festival para a realização desta cobertura, além do apoio e da amizade de Adriano Costa. Sem ambos, este texto simplesmente não existiria. ❤️

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne. A foto que abre o texto (Fin del Mundo) é de e Bruno Carachesti

4 thoughts on “Balanço: Com melhor line-up do ano no país, o paraense Se Rasgum 2024 é festival pra quem gosta de música

  1. Nessa hora, Belém é o lugar mais perto de Seattle, Manchester, Berlin, Nova Iorque e Buenos Aires, ao mesmo tempo.

  2. Vou entrar na brincadeira e registrar aqui meu top 5 :
    1- Filipe Catto
    2 – CéU
    3 – Fin del Mundo
    4 – DIIV
    5 – Molho Negro (Jair Neves)

    Nessa edição do festival, entre alguns nomes em início de carreira e medalhões que entram com o jogo ganho, vi na apresentação de Catto o brilho artístico de uma carreira beijando o auge.

    Sou fã da CéU e enfrentei o perrengue de quem se propõe ficar na primeira fila. Achei ela corajosa por incluir quase todo o disco no show. Mas, saí de lá com a sensação que ficou faltando alguma coisa, o que será ?

    A dobradinha Fin del Mundo e DIIV foi muito boa, né não ? Passou rápido, sem perder o pique. Grande acerto dos curadores.

    E o Molho Negro não decepciona.

  3. Mas não é mesmo a melhor line. Esse festival tem que parar de atrasar as atrações. Parece que fazem isso pra forçar as pessoas a consumirem. Marine não é nada de gigantesco. Ano passado foi maior palhaçada o atraso do show do planet hemp. Melhorem que tá faltando

  4. Quando vi o show da Ana na lista de vocês achei que ele estivesse entre os melhores, mas que bom que vocês disseram a verdade: esse show foi uma decepção! Eu fui uma das que pediu muito por esse show, mas não por essa palhaçada!!!! Ana Frango Elétrico entrou quase 1h depois do horário para fazer um show de 40 minutos, e a primeira música era instrumental! A primeira vez dela em Belém e não aproveita o tempo e faz um show de 30 minutos, que ódio eu fiquei.

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