Música: Julia Holter cria um intrincado e belo universo sonoro em seu disco “Something in The Room She Moves”

texto de Renan Guerra

Julia Holter é um dos nomes mais inventivos e criativos da música norte americana nos últimos 15 anos e seus trabalhos já passearam por diferentes universos, de complexas experiências sonoras cheias de camadas em seu começo de carreira até possibilidades de casamentos bem próximos com a música pop, como no excelente “Have You In My Wilderness” (2015). Já “Aviary” (2018) tinha apelos épicos com uma hora e meia de duração em que Julia criava um universo barroco e complexo, misturando experiências sonoras amplas que iam de referências clássicas medievais a sons modernos e experimentais. Agora, seis anos depois, Holter retorna com “Something In The Room She Moves” (2024), um álbum que parece balancear de forma muito inteligente os seus universos mais experimentais com seu lado mais pop.

Essa ampla janela sem álbuns é algo até raro dentro da prolífica carreira de Holter. Nesse ínterim ela lançou alguns trabalhos de trilha sonora e um disco em parceria com Alex Temple e o Spektral Quartet, porém grande parte do tempo ela realmente ficou parada por diferentes motivos. Julia Holter descobriu que estava grávida durante a pandemia de covid-19, que paralisou a todos, e sua filha com o músico Tashi Wada nasceu ainda sob o distanciamento social. Reclusa em casa, em puerpério e com outras questões em curso, Holter deixou o seu trabalho em “repouso”, pois não estava conseguindo escrever nem ler com a mesma frequência e assiduidade, envolvida nas questões familiares e domésticas, bem como nas frequentes sessões revendo “Ponyo: Uma Amizade que Veio do Mar” (Hayao Miyazaki, 2010) ao lado de sua filha – voltaremos a “Ponyo”, pois no final das contas o disco de Holter pode até conversar bastante com o filme dos Studio Ghibli.

Outro fato importante mexeu com a vida da artista nos últimos anos: a perda de seu sobrinho, um jovem de 18 anos, para quem Holter acabou dedicando o seu disco e que ela definiu como “um belo jovem que adorava fazer arte, debater ideias e era apaixonado por política socialista”. O sobrinho de Holter faleceu logo após o nascimento de sua filha e, nesse mesmo espaço de tempo, seus avós faleceram, criando todo um universo temático em que Holter se viu envolvida em questões como a nossa presença no mundo e perante o outro e nas transformações em geral. Em entrevista à newsletter Tone Glow, Julia falou um pouco sobre essas experiências e vale conferir esse trecho na íntegra em tradução livre:

É difícil quando você perde alguém. Meu avô tinha 100 anos, na verdade, e ele e sua esposa faleceram não muito longe um do outro – durante o mesmo período. Perder alguém idoso é obviamente muito diferente de perder um sobrinho de 18 anos. Isso é uma tragédia completa. Mesmo sendo tão diferentes, há essa tristeza e arrependimento de desejar ter mais tempo para ficar com essas pessoas. Existe esse desejo de me conectar, e esse é provavelmente o meu sentimento mais honesto, e acho que ainda estou nisso. Em ambos os casos são familiares que não moravam perto de mim, por isso não os vi muito nos últimos anos. Existe essa desconexão que os torna tudo mais difícil porque eram pessoas interessantes e significativas.

Esta permanência é intensa – a permanência da morte. Para alguém como eu, que não é religiosa, mas talvez seja espiritual de uma forma abstrata, essa permanência da perda desafia aquilo que sempre procuro em busca de conforto, que é a forma como as coisas mudam. Essa ideia de que somos um pontinho no universo e que nada importa muito é como sempre me senti e acho isso reconfortante. A permanência da morte confronta isso de alguma forma, e não sei como explicar. É como o reverso de quem é religioso, onde algo ruim acontece e isso faz com que questionem. E como isso se manifesta na música? Não sei. E talvez não tenha nada a ver com a música.

“Talking to the Whisper” é para mim a música que mais trata do luto e do amor em geral. Isso é algo que aprendi ao fazer este disco, que o amor profundo pode ser muito doloroso. Há uma frase: “O amor pode ser devastador”, e é assim que o amor verdadeiro é. Pode ser completamente destruidor. Essa consciência do amor, seja porque você tem um filho ou um relacionamento romântico de longo prazo com alguém ou porque você tem um relacionamento forte com seus pais ou sua irmã… esse tipo de consciência da preciosidade desse amor – e quão difícil é, e que exige trabalho e uma mudança positiva – todos esses fatores influenciam meu histórico. Eu não estava completamente consciente disso quando gravei, mas parece que foi isso que surgiu.

“Something In The Room She Moves” capta de forma completamente poética e instigante todas essas questões que moveram Julia durante a produção do disco. A perspectiva de mudança, de se transformar a partir das relações e de se recriar a partir de perdas e ganhos é um caminho tratado pela artista de forma bem distante do óbvio. Todos esses questionamentos resultam em canções que passeiam das orquestrações pop barrocas à experimentações ruidosas do jazz, com muitas conexões com a música ambiente e experiências sonoras que remetem ao etéreo ou ao espiritual. E tudo isso pode aparecer das maneiras mais únicas possíveis. Lembra que falamos de “Ponyo” ali em cima? Quando pegamos a letra da belíssima “Spinning”, Holter fala sobre o amor e as conexões com versos como “What is the opposite love in becoming fish? / I’m in the way, I’m in the way / I’m in the precious belonging of day”, e fica bem clara a referência quando pensamos no pequeno peixinho dourado do filme de Miyazaki que se transforma em humano por amor e amizade ao pequeno garoto Sousuke, enfrentando assim todas as descobertas e belezas da vida em terra firme.

Essa correlação entre “Ponyo” e o disco de Holter é só uma dessas possibilidades narrativas propostas pela artista, pois seu disco é construído em intrincadas histórias e conexões, porém todas elas extremamente fluidas e abertas para as possibilidades interpretativas de cada ouvinte. Quer outro exemplo dessas correlações simples que podem gerar diferentes possibilidades interpretativas? O título do disco veio da forma como Holter nomeou uma faixa demo mudando uma palavra da linha “Something in the way she moves”, da música “Something”, dos Beatles, trocando o “way” ali por “room”, isso por que na época ela estava assistindo a série “The Beatles: Get Back”, de Peter Jackson. Uma mudança simples que, segundo a artista, foi feita sem grandes intenções, sem grandes significados escondidos, porém que foi lida por muitos ouvintes como uma mudança que agregou uma transgressão feminista, tanto que até chegou a se conectar o título do disco ao ensaio feminista “Um teto todo seu”, de Virginia Woolf, que no original se chama “A Room of One’s Own”. Aquela questão interessante de quem uma obra pode ganhar múltiplos significados e camadas perante cada ouvinte.

Todas essas possibilidades de interpretação e múltiplas leituras do disco vêm principalmente em decorrência de sua tentativa de criar canções que partem desses joguetes infantis, de criar trilhas sonoras como que para brincadeiras infantis, como que desenhando um universo para sua própria filha. Produzido ao lado de Kenny Gilmore – nome que já trabalhou ao lado de Weyes Blood -, e escrito ao lado dos músicos Devin Hoff e Chris Speed, “Something In The Room She Moves” pode conversar com diferentes tipos de ouvintes, pois em seus momentos mais estranhamente pop parece se conectar com as sonoridades de gente como Kate Bush, Laurie Anderson e Cassandra Jenkins, enquanto em seus momentos mais experimentais se aproxima bastante com sonoridades que podem ir de Dead Can Dance a Laraaji. E nesse mar de possibilidades, o que se destaca é a voz cada vez mais delicada e bem colocada de Holter, que consegue ir do canto pop às vocalizações meditativas, convidando o ouvinte para uma jornada encantadoramente bela.

Mergulhar em faixas como “Sun Girl”, “Materia” ou “Talking to the Whisper” (aliás, os minutos finais dessa aqui são de chorar de beleza!) é como se abrir para um mundo em que a dor, a perda e as dúvidas se irmanam com a beleza do renascimento, da descoberta e da transformação. Nesse sentido, recomendamos que você dê play em “Something In The Room She Moves” com o tempo necessário e se deixe levar pelo universo pessoal de Julia Holter, pois estamos convencidos de que você não passará incólume pela beleza de seu trabalho.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.