texto e vídeos de Bruno Capelas
fotos de Gareth Jones
Se alguém contasse essa história há alguns anos, ninguém acreditaria que seria verdade. Mas nesses tempos pós-pandêmicos, Evan Dando tem protagonizado um dos contos mais inacreditáveis da cena indie brasileira. Namorando a filha de Renato Teixeira, Antonia, ele veio ao Brasil tratar os dentes no final de 2022 e acabou virando uma espécie de lenda urbana local, morando na Serra da Cantareira, comprando queijo em Minas Gerais, dando rolê na Vila Madalena e curtindo a noite paulistana, bem “gente como a gente”. Claro que não faltaram shows: ao longo de 2023, o histórico líder dos Lemonheads acumulou apresentações tão sentimentais quanto caóticas por aqui, a ponto de tocar a obra-prima do sogrão, “Romaria”, deitar no chão e querer arranjar briga com o Sesc, como bem registrou este site no ano passado. Aliás, foi tanta confusão que Evan até ganhou o epíteto de “rei do rolê aleatório”, como uma espécie de Ronaldinho Gaúcho do rock 90.
Por tanta controvérsia, não foram poucos os indies que sorriram amarelo pensando no passado quando Dando anunciou uma apresentação do recém-reformado Lemonheads no Cine Joia, em São Paulo. Muita gente, porém, pagou pra ver, a ponto dos ingressos terem se esgotado no dia do show, que contou com a abertura de Thunderbird. Mais: quem chegou na hora pra ver o trio, completado por Farley Gavin (baixo) e John Kent (bateria), teve de disputar espaço na pista em declive da casa de shows na Liberdade, zona central da capital paulista. A competitividade também estava presente na banquinha de camisetas montada pela produção – com direito a um simpático cartaz com design de oferta de supermercado brazuca e um limão de sorriso sacana.
Contrariando as expectativas, o grupo subiu ao palco à 0h30 da manhã do sábado, 20 de julho, sem atrasos – e pronto para empurrar todo o folclore por água abaixo. No lugar de discursos desconexos, músicas interrompidas pela metade e muitos covers inusitados, o que se viu na Liberdade foi uma banda esporrenta e pop ao mesmo tempo, em alto nível, sem dar muita chance para o azar nem ficar de conversinha com a plateia. O repertório mais que ajudava: logo de partida, Dando e seus companheiros executaram na íntegra e na sequência o clássico “It’s a Shame About Ray”, de 1992, botando indies velhos e jovens nostálgicos para gastar os joelhos ao som de petardos como “Confetti”, “Rudderless”, “Rockin’ Stroll” ou “Bit Part”, pra não falar na faixa-título.
Houve até quem sentisse falta de um backing vocal feminino, fazendo jus à época que Juliana Hatfield fez parte dos Lemonheads, mas nem precisava. Afinal de contas, o foco da noite estava menos na delicadeza melódica do trio, e mais na potência, com Evan tocando sua guitarra como quem pisa no acelerador já no meio de uma curva fechada, em vez de frear. Velocidade era a tônica do momento, a ponto do repertório do disco que deu fama ao grupo ter sido executado praticamente em meia hora, correspondendo diretamente ao tempo em estúdio.
Não teve “Mrs Robinson”, mas também não foi necessário: após tomar um fôlego com a bela releitura de “Frank Mills”, o Lemonheads seguiu pela valorosa estrada da nostalgia com as canções de “Come On Feel The Lemonheads”, de 1993. Foi uma segunda metade do show com menos intensidade do que a primeira, até por questões de repertório. O que não quer dizer que não houve momentos belos, com direito a execuções vigorosas de “The Great Big No”, “Big Gay Heart”, “It’s About Time”, “Into Your Arms” e até mesmo o lado-B “Style”, com Evan assumindo o baixo no lugar de Gavin.
Para quem, a essa altura do campeonato, apontasse o fato de que o show só tinha canções empoeiradas, o grupo mostrou a recente “Fear of Living”, lançada em fevereiro – e produzida aqui mesmo em São Paulo, na Vila Mariana, no estúdio do produtor Apollo Nove.
Mais do que apenas uma boa canção pop, “Fear of Living” mostra que os anos living la vida loca não tiraram a capacidade de Evan de compor bonitos refrãos e melodias. Para quem olha para o futuro, pode ser o começo de uma era interessante para os Lemonheads – que aproveitaram a passagem por São Paulo para gravar o repertório de um novo disco, sem data prevista de lançamento. E, antes do bis, teve ainda “Hospital”, de “Car Button Cloth”, de 1996, com aplausos rápidos e efusivos servindo de trilha para a descida da banda para o camarim.
No bis, Evan voltou sozinho ao palco com seu violão, repetindo a formação com que fez muitos shows no país em 2023. Houve quem temesse pelo pior quando ele começou a discursar, mas passou rápido: em vez da confusão exibida em palcos como o do Sesc Avenida Paulista, em que se atropelava entre músicas, o vocalista dos Lemonheads fez arrepiar com uma delicada versão de “Will You Love Me Tomorrow”, clássico das Shirelles composto por Gerry Goffin e Carole King. Não era só uma homenagem, era uma pergunta séria ao público, cuja resposta pode ser fácil de adivinhar, mas difícil de dizer em voz alta. Talvez pelo mesmo simbolismo, coube à enigmática “If I Could Talk I’ll Tell You” – o grande hit de “Car Button Cloth” – fechar a apresentação, com Dando e seus companheiros mandando todo mundo para casa com um sorriso no rosto de orelha a orelha.
É cedo pra dizer se os Lemonheads vão voltar à velha forma. Ou se Evan Dando e os colegas serão capazes de repetir a força da apresentação do Cine Joia nas mais de 50 datas que eles têm pela frente nos EUA e Europa ainda em 2024 – e é fácil compreender quem desconfie que não, considerando décadas de históricas exibições problemáticas de um dos garotos de ouro do rock dos anos 1990 em solo pátrio. Talvez seja até inacreditável ler esse texto no futuro. Mas, acredite se quiser: por ao menos 90 minutos de uma madrugada gelada em julho de 2024, os Lemonheads fizeram uma apresentação mágica, daquelas noites que deixam a gente sem palavras e se tornam memórias incríveis na mesa de bar por muitos e muitos anos. Se eu pudesse, eu te diria: dê uma chance aos Lemonheads. E viva a água da Serra da Cantareira.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
Peguei o show em BH e apesar de vários problemas técnicos, foi um sonho realizado ver Evan ao vivo cantando algumas das minhas favoritas.