“Stevie Van Zandt: Discípulo” é uma ode ao poder transformador do rock and roll

texto de Davi Caro

Miami Steve, Little Steven, Silvio Dante: Steven Van Zandt é um homem conhecido por muitos nomes, ainda que sua icônica figura tenha povoado o imaginário popular daqueles que vêem, como ele próprio, algum tipo de poder transformador quase sobrenatural transmitido através da música. Conhecido principalmente como um dos fiéis e indispensáveis escudeiros de Bruce Springsteen em sua mítica E Street Band, o guitarrista nascido em Massachusetts e criado no estado de New Jersey é facilmente identificado por sua energética presença de palco, associada a seu estilo hoje já considerado icônico – as bandanas e roupas sempre coloridas e vibrantes – ainda que, surpresa, muitos não saibam tanto de sua carreira para além do posto de longevo membro de um dos mais míticos agrupamentos musicais de apoio que já se viram.

“Stevie Van Zandt: Discípulo” (2024), longa documental dirigido por Bill Teck, e lançado como produção original via HBO Max, retifica com louvor esse fato. Contando com ricas imagens de arquivo, além de depoimentos atuais de muitos dos ilustres colaboradores com os quais o músico e compositor trabalhou ao longo dos anos, trata-se de um filme que, para além de elucidar uma das mais prolíficas e impressionantes carreiras musicais de todos os tempos, contorna todos os clichês do gênero para, de modo surpreendente, fazer qualquer um acreditar que, sim, a música é capaz de mudar o mundo para melhor.

A trajetória pessoal de Van Zandt pode, à primeira vista, parecer a típica história de todos os grandes ícones da geração baby boomer: oriundo de uma família de classe média, Steven se mudou, ainda na infância, para o lugar que chamaria de seu e onde construiria sua carreira. Motivado a criar sua própria banda após ver a mítica apresentação dos Beatles no programa de Ed Sullivan, em Fevereiro de 1964, sua inserção no cenário cultural da região costeira de Nova Jersey foi instrumental para sua eventual conexão com Bruce Springsteen, com quem cuja amizade é mesmo anterior a formação da banda que os uniria por tantos anos. A primeira experiência na estrada, acompanhando o grupo de doo-wop The Dovells, abriu sua percepção para diferentes estilos musicais, além de expandir seu currículo e render-lhe o apelido “Miami Steve”, graças a sua predileção pelo clima ensolarado da Flórida (onde a jornada terminou) e sua adoção de camisas e estampas floridas, tão contrastantes com o cinza da área que o destino escolheu como sua casa.

O mesmo destino o colocou em rota de encontro com os integrantes do grupo que viria a co-fundar, Southside Johnny and the Asbury Dukes, com os quais Steven se aperfeiçoaria como produtor e poderia se familiarizar com o papel de “co-protagonista”. Tal função seria posta à teste uma vez que os shows com o grupo passaram a ser intercalados com os compromissos da já formada E Street Band, da qual passaria a ser membro oficial a partir da turnê de “Born To Run”, em 1975. Em sua nova ocupação, Van Zandt – que passaria, em pouco tempo, a adotar o novo nome artístico “Little Steven” – faria de sua missão máxima colaborar com seu parceiro de longa data, com quem ajudou a trilhar a cena musical de Asbury Park, a chegar ao topo do mundo. Não por acaso, portanto, o mesmo deixaria Bruce e a banda exatamente antes do início da turnê do clássico-entre-clássicos “Born In the USA” (1984), o disco que alçou Springsteen e seus escudeiros ao status de rockstars planetários. Muito embora tenha tocado no disco, e feito pontuais participações especiais durante os shows – bem como aparecido no antológico clipe de “Glory Days” – Steven tinha outros planos em mente, como o próprio faz questão de citar no filme.

Mesmo durante seu período como o segundo em comando na E Street Band, Van Zandt já almejava voos pessoais. A busca por uma identidade particular o levou à formação da banda Little Steven & The Disciples of Soul, junto da qual lançaria seu primeiro disco em 1982 e em cujas turnês, que o levariam para além da Cortina de Ferro numa época onde a ameaça da Guerra Fria e o pânico nuclear aterrorizavam populações ao redor do mundo. “Onde quer que fosse, as pessoas me viam [simplesmente] como um americano. Mas eu nunca havia pensado em mim mesmo como um americano”, reflete o protagonista. Tal tomada de consciência acabaria conduzindo Steven a uma posição na qual poucos poderiam tê-lo imaginado: a de ativista pelos direitos humanos.

O guitarrista – bem como sua esposa, Maureen, com quem se casou no início da década de 1980 – se recorda então das primeiras informações recebidas a respeito do regime do Apartheid, até aquele momento ainda em vigência na África do Sul e responsável pelo longo encarceramento do também ativista Nelson Mandela. Realizando sua primeira visita (de maneira clandestina) aos campos desolados do país africano e se deparando com o choque de realidade que a comparação com o resort de Sun City – uma área bem abastecida e exclusiva, alheia à esmagadora maioria faminta da população – o músico decidiu tomar para si a tarefa de conscientizar ao mundo de algo que, como ele próprio sentira, acontecia bem diante de todos ainda que poucos se importassem. Juntando forças com o produtor Arthur Baker, e elencando um time impressionante de colaboradores que ia de Bono e Bob Dylan a Rubén Blades e Afrika Bambaataa, passando por Lou Reed, Peter Gabriel, Joey Ramone e Pat Benatar (além, óbvio, de Bruce Springsteen), Steven capitanearia o lançamento do single “Sun City”, sob o nome de Artists United Against Apartheid. A repercussão do trabalho levaria, conforme o documentário faz questão de elucidar, a sanções contra o governo sul-africano, que libertaria Mandela em 1990 apenas para ver o mesmo se tornar presidente, quatro anos depois.

Tão impressionante quanto isso tudo é o contentamento de Van Zandt em não tomar um papel protagonista nisso tudo, ainda que se entregando com paixão e abandono às causas pelas quais lutava. Uma pausa um pouco forçada na carreira, no início dos anos 90, é pensada menos como um período de ostracismo do que um reencontro consigo mesmo, com seu passado e com seus amigos: ele produziria um álbum de reunião da banda de Southside Johnny, e inclusive voltaria a figurar na linha de frente da E Street Band (que Bruce havia dissolvido) quando de sua breve reunião, em 1995. Após a retomada do supergrupo, em 1999, Steven retornaria à posição de membro fixo, ainda que sua carismática presença de palco fosse atraída por um ingrediente extra: a surpreendente participação como coadjuvante na série televisiva “Os Sopranos”, onde interpretava o ao mesmo tempo hilário e ameaçador mafioso Silvio Dante. Sua química como conselheiro para Tony Soprano, interpretado pelo saudoso James Gandolfini, trazia consigo muito do mesmo magnetismo através do qual Steven havia cativado tantas pessoas ao redor do mundo, fossem elas grandes nomes ou meros espectadores, identificados com a sinceridade da mensagem passada por um homem de bandana colorida.

Muitas destas pessoas, obviamente, também marcam presença através de seus depoimentos ao documentário: Springsteen (“Meu padrinho de casamento”, segundo o personagem principal), Paul McCartney (seu herói de infância), Bono, Chris Columbus, Jimmy US Bonds, Joan Jett e Jimmy Iovine são apenas alguns dos muitos nomes dispostos a reverberar a boa reputação e dão uma ideia objetiva da dimensão de um currículo como aquele acumulado por Van Zandt, à frente ou nos bastidores de shows, sessões de gravação, filmagens e campanhas humanitárias.

É possível enxergar “Discípulo”, em seus inúmeros méritos, como uma espécie de filme-primo de outro grande longa documental dedicado a heróis menos reconhecidos da música: “The Sparks Brothers” (2021), produção dedicada a documentar, sob o olhar atento do diretor Edgar Wright (olhar esse muito mais estilizado, embora tão eficaz quanto o de Bill Teck) a jornada comovente e iconoclasta dos irmãos Ron e Russell Mael à frente do duo Sparks. Outros poderiam, ao colocar o novo longa ao lado de “A Noite Que Mudou O Pop” (de 2024, retratando a gravação do single de “We Are The World”), dar os devidos créditos a Van Zandt, por conseguir o que Bob Geldof somente almejou alcançar – mudanças reais, perceptíveis e duradouras, por meio do improvável e triunfal poder da música. Seja como for, “Stevie Van Zandt: Discípulo” ajuda a jogar luz sobre uma das mais admiráveis histórias da música (e da cultura) pop, dando espaço a um personagem surreal demais para ser crível, e real demais para ser inventado. A maior diferença, afinal, nem sempre é feita por parte daqueles no centro e à frente.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.



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