texto de Renan Guerra
No futuro, em função de uma nova droga, morrer se torna uma experiência multissensorial. Em busca dessa experiência, muitas pessoas irão optar pela morte em eventos que vão demarcar mudanças fundamentais na sociedade. Com isso, o novo narcótico – chamado “mortalis” – será regulado pelo governo bastando preencher todos os documentos necessários, esperar que funcionários públicos registrem seu interesse e aguardar o sistema decidir se você está apto para ter a “boa morte” ou não. Essa nova forma de morrer modificará as relações entre vida, morte e luto transformando as relações sociais. É nesse pano de fundo que se desenrola a narrativa de “Entre a vida e a morte, há vários documentos” (2024), livro de estreia do mineiro Michael Maia, lançamento da Editora Paraquedas.
Nessa narrativa distópica acompanhamos a história de Antônio, um funcionário público que trabalha na regulamentação do narcótico em contraponto com a visão de sua irmã Luzia, professora e uma importante voz antagônica ao sistema da “boa morte”. Esse conflito de irmãos em polos opostos cria um microcosmo familiar que serve como ponto de partida para uma série de reflexões sobre perda, luto e a experiência coletiva de se lidar com a morte. Um dos pontos centrais da narrativa se dá quando Luzia e sua esposa Tânia, ambas em tratamento de um câncer terminal, optam por se cadastrar no sistema de morte digna do governo e comunicam essa atitude para sua família. Essa escolha irá bagunçar as crenças de toda família, especialmente as de Antônio e suas perspectivas sobre o que seria uma morte ética dentro desse novo sistema.
No universo criado por Maia, o contraponto à possibilidade simplificada da morte é apontado por uma exacerbação do viver e do consumo em torno dessa necessidade de “aproveitar a vida ao máximo”. Para além disso pairam entre as entrelinhas questões mais amplas sobre a morte: quem tem direito a uma “boa morte”? Quais são os corpos levados mais facilmente para esse espaço final? Há uma detenção e/ou definição do governo de quais corpos seriam os mais propícios a essa morte? Todos os questionamentos propostos em “Entre a vida e a morte, há vários documentos” partem desse universo de distopia e de um distanciamento imaginário do presente, numa escolha sagaz do autor, que nos joga neste cenário com outras regras e logísticas apenas para nos levar por uma turbulenta reflexão sobre o agora. Michael Maia, nascido em Entre Rios de Minas e formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), construiu seu romance com base em pesquisas amplas sobre sociedade, morte e suicídio, além de suas próprias experiências com o luto.
O universo distópico funciona como um pano de fundo, pois a narrativa nos coloca realmente dentro de um drama familiar clássico, com personagens que passam a refletir sobre as suas próprias relações quando são impactados pela presença cada vez mais próxima da morte. Com isso, a narrativa de Maia consegue construir personagens com nuances interessantes, que ora nos atraem ora nos repelem – personagens imperfeitamente humanos. Sua construção do protagonista Antônio o coloca nesse espaço dúbio em que nem sempre concordamos com suas ações e suas crenças e mesmo assim entendemos as suas dúvidas e anseios, tudo em função de uma prosa que foca muito mais nos fluxos existenciais de seus personagens do que em necessariamente nos detalhar todos os meandros do cenário distópico do livro.
Nisso tudo, o mais rico é a forma como a narrativa prende o leitor em um ritmo envolvente e fluido, que nos insere dentro desse novo universo de forma sincera e complexa. “Entre a vida e a morte, há vários documentos” é o livro de estreia de Maia e desde já apresenta um autor com um interessante domínio da narrativa, que sabe nos guiar por seu universo literário de forma inteligente e coesa, criando um vínculo interessante com seu leitor. Pelas cento e poucas páginas do livro, o autor nos leva em uma história que vai da tensão e do medo que só as distopias nos trazem, como também navega pelas sutilezas que uma história sobre fissuras emocionais familiares pode oferecer, tudo isso apresentando questionamentos provocativos sobre crenças, vida em sociedade e o direito à morte.
“Entre a vida e a morte, há vários documentos” cria um universo bastante único e delicado que nos deixa curiosos por quais outros universos a escrita de Michael Maia irá navegar. Por enquanto temos aqui um ponto de partida criativo, instigante e, acima de tudo, emocionante!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.
Eu estou amando a leitura do livro Entre a vida e a morte há vários documentários.uma leitura que prende atenção da gente