Crítica: Cindy Lee tenta reconfigurar o prazer ritualístico de ouvir música no excelente “Diamond Jubilee”

texto de Pedro Hollanda

Faz 60 anos desde a primeira aparição dos Beatles no Ed Sullivan Show. A cultura musical como conhecemos pode não ter nascido exatamente ali, mas, a partir daquele momento, tudo mudou em termos do lugar do jovem na sociedade. Antes, eles eram sumariamente ignorados por sua falta de experiência. Agora, tinham poder de compra e com isso um desejo de serem ouvidos na sociedade.

É possível que Patrick Flegel não tivesse essa efeméride em mente quando batizou seu sétimo álbum sob a alcunha Cindy Lee, mas é uma coincidência curiosa.

O projeto nasceu das cinzas do Women, um grupo legal de indie rock do Canadá que literalmente acabou no palco em 2010. Enquanto seus ex-parceiros formaram o grupo pós-punk Preoccupations, que conseguiu alguma notoriedade na cena alternativa, Flegel decidiu seguir um caminho diferente.

Para começar, Cindy Lee é uma persona drag, inspirada em cantoras dos anos 1960. Flegel se apresenta montado, cantando e tocando guitarra acompanhado por bases pré-gravadas. A sonoridade fez o projeto ser colocado junto de nomes taxados com a alcunha de pop hipnagógico, um termo criado para descrever artistas cujas canções pareciam operar através de vários filtros de memória. Nostalgia.

Entretanto, “Diamond Jubilee” (Realistik Studios, 2024) não parece se encaixar nessa caracterização. Apesar de evocar pop clássico e psicodelia, Flegel aos poucos força a colisão de vários gêneros, desde música africana, funk, soul, eletrônica, indie rock e experimental, tudo isso em torno de uma experiência cujo tema central se assemelha mais a como nós nos relacionamos com álbuns.

A esse ponto, a maneira como o disco foi lançado é mais conhecida que a música em si: um álbum duplo de 32 canções e mais de duas horas de duração, “Diamond Jubilee” foi apresentado sem qualquer fanfarra numa sexta-feira, com um link de Youtube do álbum completo postado em alguns sites musicais. Porém, qualquer tipo de disponibilidade para streaming parava aí.

Se o ouvinte quisesse adquirir as faixas separadas, precisava acessar um endereço do Geocities e pagar 30 dólares canadenses (desde então essa exigência de pagamento foi alterada para um pedido de doação, com o download em WAV agora gratuito). Flegel tomou medidas extremas para que “Diamond Jubilee” tivesse uma apreciação diferente do modelo atual.

Apreciação é um termo chave, pois o primeiro instinto aponta para a palavra “consumido”, mas ela parece completamente oposta a como Patrick Flegel quer que o público se relacione com “Diamond Jubilee”. A todo momento no álbum, a impressão de estar escutando uma rádio num espaço liminal é presente. Nada parece existir enquanto as canções tocam, o ouvinte parece removido da realidade.

Isso lembra relatos de como jovens ingleses ouviam música no final dos anos 1950 e início da década de 1960. Rock e pop não eram permitidos na BBC, então a juventude precisou recorrer a estações de longa distância de outros países ou até rádios piratas que operavam no Mar do Norte. Garotos e garotas ficavam grudados aos seus aparelhos numa experiência quase ritualística, seja tarde da noite quando seus pais não podiam lhes ouvir ou quando estavam em completa solidão.

Nada desses conceitos importariam muito se o material do álbum não fosse de qualidade. Felizmente, “Diamond Jubilee” é um dos melhores lançamentos de 2024.

Flegel tem um dom para melodia clássica, exemplificado na balada “All I Want Is You”, além de ser capaz de introduzir elementos sonoros mais experimentais a arranjos tradicionais com elegância. A sonoridade de Cindy Lee sempre teve um elemento forte de ruído branco e noise, a ponto de quase fazer os primeiros álbuns difíceis de ouvir, mas aqui tudo encaixa perfeitamente no lugar.

A parte mais legal de “Diamond Jubilee”, contudo, é o CD 2. Após apresentar sua visão para pop clássico, Cindy Lee abre suas asas para incorporar elementos dos anos 1970, seja funk, krautrock ou eletrônica. Além disso, as canções adquirem uma qualidade de colagem sonora. As mudanças bruscas acontecem mais frequentemente em comparação à primeira metade. Quase como se a persona drag estivesse procurando no dial a faixa perfeita para ilustrar seu estado emocional.

No final das contas, “Diamond Jubilee” faz pensar no dito: “Algumas pessoas tentam reinventar a roda, outras se satisfazem fazendo o melhor pneu possível”.

Patrick Flegel fez o melhor pneu possível, mas mesmo não tendo reinventado a roda parece querer nos lembrar de uma relação fundamental com a roda que deixamos para trás em nome da comodidade de streaming.

– Pedro Hollanda é colaborador do IgorMiranda.com.br

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