entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
A edição de um novo álbum de Maria Reis é sempre um fato importante no panorama musical português contemporâneo. O seu trajeto justifica-o e tem sido marcado por uma constante evolução como cantora, compositora e performer, dotada de um particular sentido de irreverência e inconformismo no relato da sua esfera pessoal e do espaço que a rodeia. Quando vem ao meu encontro, de manhã, num café do bairro lisboeta da Graça, a sua boa disposição é um sinal do otimismo com que encara o seu disco mais recente, “Suspiro” (2024), que seria lançado dentro de poucos dias (com edição em vinil pela Cafetra Records). É precisamente pelo significado do título desse trabalho que começamos a conversa. “Acho que é uma palavra e um gesto que pode ser usado em várias circunstâncias. Uma pessoa pode fazer um suspiro de alívio, mas também suspira por estar apaixonada, magoada ou ansiosa. Dei esse nome ao álbum porque é um trabalho em que navego por vários estados de espírito. Tal como eu e muita gente, somos uma montanha russa de emoções e considero que o suspiro atravessa essas fases emocionais de forma diferente”, explica.
Em seu novo álbum, Maria Reis, metade das Pega Monstro (sua banda com a irmã Júlia), mantém o tom direto e um encadeamento com a trilogia composta pelos discos “Chove na Sala, Água nos Olhos” (2019), “A Flor da Urtiga” (2021) e “Benefício da Dúvida” (2022). Para além do pop saltitante “T-Shirt” e do rock explosivo de “Meta Data” (dois pontos altos), Maria emprega um registro vocal mais expressivo nas músicas “Fado do Salineiro” e “Pico”, tocadas na viola campaniça (tradicional do Alentejo), gerando maior amplitude musical. A faixa derradeira do álbum, “Coisas do Passado”, particularmente interessante, assume a forma de um exercício de expurgação pontuado por uma toada insistente e catártica. Relativamente à canção, Maria Reis revela o verdadeiro propósito do seu lado cáustico: “Compus ‘Coisas do Passado’ a par da visita do Papa Francisco, durante o evento da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa (2023). Sem outro tipo de comentário, houve um investimento explosivo estatal um bocado obsceno e foi a minha resposta a essa incoerência política e social. A música levanta questões sobre como se investe verdadeiramente o dinheiro e para quem ou em prol do quê. Por isso, escrevi a canção para reagir ao que sucedeu, porque sou uma pessoa reativa (risos)”.
Outra característica de “Suspiro” é a sua maturidade lírica, fruto de uma vivência plena e consequência / decorrência da participação em mais shows, interpretações e a assunção do perfeccionismo artístico. Pelo meio, Maria Reis revela uma vontade forte: “sintetizar melhor o que sinto e o que sou em formato canção”, mas o seu ponto criativo permanece o mesmo de sempre ao longo do percurso. “Só continuo a tocar e a escrever canções porque ainda não sei nada ou não sei tudo. É assim que navego. Há uma linha de continuidade no trabalho solo e nas Pega Monstro. Vem tudo do mesmo lugar, do meu quarto e do tempo para mim. O sítio criativo, mental e espiritual é idêntico tal como a luz. Eu preservo muito esse lugar apesar de ir procurando outras coisas, mas esse espaço é intocável. Não há outra maneira de dizer: é a casa”, conta.
São vários os estados de espírito retratados no disco, como o amor, a resignação ou a superação, mas o clipe de “Estagnação” concebido por Maria Reis e pelo jovem músico e produtor Tomé Silva, sugere um cenário distinto, na medida em que apresenta uma paisagem onírica onde o tempo parece suspender-se enquanto Maria caminha e salta ao longo do percurso. Sobre o âmago do vídeo, a artista lisboeta esclarece a sua orientação: “A canção fala de um estado depressivo em conversa com outra pessoa que não tem interesse em nada nem ninguém. Nas imagens, procuramos descrever como é que se visualiza a apatia e a inércia e se consegue cristalizar e formalizar aquilo que no fundo é a depressão e a estagnação. Visualmente, eu e Tomé também queríamos puxar o lado onírico, porque quando te encontras nesse lugar estás muito na tua cabeça e no abstrato. É um pensamento dominante, não estás na terra ou em contato com nada e apenas no modo ‘cruising’ e tentámos transpor isso para imagens”. No momento em que falamos, Maria Reis prepara-se para seis datas portuguesas de apresentação de “Suspiro”, nas quais irá contar com Tomé Silva na bateria e Francisco Couto (cujo projeto musical se chama Hifa) no baixo. “Será um registo power trio, mais punk rock, na linha do disco, mas adaptado a este formato. Espero que o pessoal goste dos shows porque temos trabalhado nesse sentido”, conclui.
De Lisboa para o Brasil, Maria Reis conversou com o Scream & Yell. Confira:
O seu novo trabalho foi feito em colaboração com o músico e produtor Tomé Silva. Gostaria que me contasse um pouco sobre a concepção do disco, suas referências musicais e os objetivos que tinha em mente alcançar.
Eu tinha um conjunto de canções, queria gravá-las, mas ainda não sabia com quem ia fazer o trabalho. De certo modo, estava a considerar várias opções e depois vi um vídeo do Tomé Silva, que eu não conhecia na altura, em que ele tocava uma música minha (“Odeio-te”) na bateria. Fiquei impressionada e escutei um pouco mais o seu trabalho. De seguida, falei com um amigo que o conhecia e percebi que ele fazia a produção das suas faixas, mas também estudava produção musical na ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, no Porto). Nessa noite, tive um sonho em que colaborava com o Tomé e combinei com ele e um amigo só para nos conhecermos e entender a ‘vibe’. Depois de o conhecer percebi que ele era fixe (legal) e perguntei-lhe se ele queria produzir meu disco. Contei-lhe que tive um sonho e o Tomé disse-me: “Não vais acreditar, mas tive o mesmo sonho”, ou seja, há aqui uma ocorrência espiritual qualquer que nos fez aproximar no contexto do álbum. Eu não tinha grandes expectativas. Sabia apenas que com tudo o que tinha aprendido nos meus últimos três trabalhos, na gravação e nas ideias dos arranjos, pretendia sintetizar esses elementos e explorar outras coisas com estas 11 canções. Os meus discos anteriores, por serem EP´s, tinham menos faixas e neste álbum havia a oportunidade de aprofundar mais os sons, as texturas e ter algo especial em cada uma das músicas. Mas, focando-me sempre no conjunto formado por bateria, guitarra e baixo, porque isso faz parte da minha identidade que está ligada ao punk rock e à cena formal de banda. É um aspecto estrutural para mim.
“Suspiro” aborda o pop, a música tradicional portuguesa, o rock, lo-fi e algumas faixas a meio gás. Você apresentou este leque sonoro por ser um resumo das suas referências ou por se tratarem das correntes musicais com as quais se sente mais à vontade?
Quando faço uma música não penso que a vou edificar referenciando algo de que gosto ou acho interessante. Sou estimulada e inspirada por coisas que se calhar inconscientemente depois se materializam na forma como elaboro as canções. Acho que formalmente, e faz parte do meu trabalho, na melhor das hipóteses o objetivo é ser cada vez melhor e mais criativa. Por vezes não é tão fácil assim quando existe aquele pensamento básico de que toda a música já foi feita. Mas, isso é irrelevante e não interessa para nada, porque é um lugar pouco estimulante enquanto pessoa criativa e não leva a lado nenhum. A ideia é fazeres uma coisa que seja imaginativa para ti, porque um gesto criativo teu é algo que te estimula e depois aos outros, se tudo correr bem. Sinto que aquilo que você referiu faz parte das minhas referências de sempre, como são os elementos ligados à canção e à crueza de tudo, não só esteticamente, mas também poeticamente. Sinto que sou mais ambiciosa porque tenho mais criatividade e técnica e isso traz-me um acréscimo de imaginação. É algo que também me abre possibilidades de fazer coisas que ainda não fiz.
Gostaria que me dissesse porque escolheu “T-Shirt” como primeiro single e me falasse do seu rasgo roqueiro particular de inconformismo (“Meta Data”).
“T-Shirt” é uma canção que salta e é pulsante. Acaba por ser transversal, porque uma pessoa está ali saltitando e em termos líricos não é necessariamente sobre mim. Trata-se de uma análise e de uma proposta de pensamento não tanto autobiográfica e é algo que atravessa o disco. Eu queria que a primeira apresentação do álbum não tivesse necessariamente a ver comigo, ou seja, que fosse do meu pensamento, mas não tanto referencial ou específica e fosse abrangente. Trata-se mais de uma análise crítica e menos de um desabafo emocional. É apenas uma primeira abordagem, porque depois o disco tem isso tudo. Gostei da sua interpretação sobre “Meta Data”, porque foi uma canção que escrevi de rajada. Ela não tem necessariamente um coro, nem repete nenhum verso, por isso não há um refrão formal. Apenas existe uma repetição de acordes e liricamente trata-se de um fluxo de consciência. Eu gosto de canções que não têm refrão e versos do tipo ABAB. É algo contínuo e essa rajada derivou do meu impulso criativo, mas também de um desabafo e análise interior que resultou nessa canção. Eu fiz a música na guitarra, mostrei-a ao Tomé Silva e decidimos fazer uma abordagem à moda antiga e elevá-la dessa forma. Essa faixa carrega em si muita energia e seria contraditório se esteticamente não fosse assim.
Está nos seus planos voltar a tocar no Brasil ou fazer uma parceria com um músico brasileiro?
Adoraria voltar ao Brasil. Isso é um grande sonho. Não vou mentir, mas neste momento é muito difícil concretizar investimentos maiores fora de Portugal. É muito complicado devido ao contexto econômico estar um pouco caótico. Mas, espero muito que aconteça e vou fazer por isso. O investimento que se está a fazer em Portugal e a ideia de apoios públicos para a cultura será muito pouco atrativa nos próximos quatro anos. A situação política afeta-nos a todos, infelizmente. As Pega Monstro foram ao Brasil há quase 10 anos e já se passou muita coisa. Por isso, desconheço qual é o panorama no Rio de Janeiro e em São Paulo, que foram as cidades onde estivemos mais tempo, mas adoraria ir lá de novo. Sinto que a ligação entre Brasil e Portugal ainda não está a fluir e as coisas não chegam cá nem lá. Mas, a música brasileira passa mais em Portugal do que o inverso. Mesmo assim, podia haver mais envolvência. Tem que se trabalhar mais e cabe-nos a nós como músicos e também a vocês como jornalistas e aos consumidores de música essa tarefa. No SoundCloud escuto muito e gosto imenso do DJ RaMeMes. Ele faz funk hardcore, esteve recentemente em Portugal e é “fora da caixa”. Mas, ao nível de canção não lhe sei indicar um nome, porque o circuito independente carioca e paulista não aparece por cá e era interessante escutar esses trabalhos. O Tim Bernardes é grande em Portugal e se calhar não tanto no Brasil, mas isso não é comum. Não dá para fazer uma analogia porque o Brasil tem uma produção musical superior à nossa.
Antevê a possibilidade das Pega Monstro lançarem um novo disco ou fazerem mais shows no futuro próximo?
Nós temos atuado em diferentes registros. Recentemente, tocamos as duas no Theatre de La Ville, em Paris, num show de celebração do 25 de Abril, e a Júlia tem tocado pandeiro. Ela ficou entusiasmada com o instrumento depois do nascimento da primeira filha. Neste momento, em termos logísticos, é muito mais fácil ela tocar pandeiro do que uma bateria completa, principalmente pelas crianças. O interesse pelo instrumento surgiu depois de ver uns vídeos numa página do Instagram que ela segue, de músicos brasileiros. Acho que a Júlia até pediu dicas a um indivíduo em particular. Por isso, dedicou-se ao pandeiro e no meu trabalho anterior, “Benefício da Dúvida” (2022), nós colaboramos as duas e iremos continuar a fazer música. Não nos interessa muito a ideia de uma reunião ou celebrar o passado. Há pouco tempo nas Damas (sala de concertos lisboeta) tocamos “Amêndoa Amarga” num registro com pandeiro e viola campaniça. Estamos sempre a avançar e a perceber o que queremos fazer e é possível realizar dentro das limitações geográficas e da gestão do tempo. Formalmente, as pessoas gostam da ideia de um regresso, uma reunião ou o festejo dos 10 anos do grupo. Nunca me agradou esse saudosismo, porque isso parece uma ideia do passado. O verdadeiro trabalho é o ´work in progress´ e podem acontecer comemorações espontâneas, como por exemplo de um álbum. No show das Damas também tocamos uma música do primeiro disco, porque vamos lá parar. O importante é celebrar o que fazemos e sempre fizemos que são as canções.
Qual é a sua maior ambição enquanto cantora, compositora e performer?
É algo que está sempre em construção e oscilação. Neste momento, a ambição é que o disco seja bem sucedido na medida em que as pessoas o ouvem. Por vezes é difícil agarrar a atenção delas. Nos tempos atuais, com tanta informação e no contexto econômico e social em que nos encontramos, não é fácil despertar a curiosidade e fazer as pessoas escutarem o álbum, que é o mais importante. A única razão pela qual eu lanço um trabalho é para ser ouvido e não por uma questão de fruição pessoal. O que me dá gozo é saber o que as pessoas acham do disco e qual é a canção de que gostam mais. Para mim, a maior gratificação enquanto música e compositora é ouvir o feedback do público. É importante que se relacionem com aquilo, tenham alguma coisa a dizer e consigam perder tempo para escutar o trabalho. Quando digo perder espero que seja ganhá-lo (sorriso). Essa é a minha maior ambição. A ideia das pessoas mostrarem aos amigos o meu álbum e partilharem os fones, criando relações íntimas com a música, é o aspecto mais gratificante. Em termos pessoais, gostaria de conseguir tocar muitas vezes fora de Portugal. Quando as Pega Monstro eram editadas pelo selo londrino Upset The Rhythm a ponte ficava mais facilitada. Eu gostava de voltar aí, porque a par de compor e gravar fazer estrada é uma das minhas coisas preferidas.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.