entrevista por Leonardo Vinhas
30 anos de um festival que só não aconteceu de forma ininterrupta porque houve uma pandemia mundial no meio do caminho. Mesmo assim, o Goiânia Noise é um dos mais longevos festivais de médio porte em atividade no Brasil. Mais importante que isso, é um festival que ajudou a projetar a cena local para o restante do país, além de ter funcionado como formador de público e criador de uma cultura de produção que não deixa de ser altamente profissional, apesar de ser independente.
Na verdade, “profissional” é um adjetivo burocrático e que não faz jus ao festival. É notória a regularidade na qualidade de som, independentemente do festival ser realizado em espaços maiores ou menores – quem frequenta shows ou festivais sabe que essa é uma façanha rara. Além disso, existe uma representatividade cultural que poucos festivais do Brasil conseguem oferecer.
Em 2024, o festival realizou sua 28ª edição no Centro Cultural Oscar Niemeyer. Foram 40 bandas em dois palcos, durante três dias (12 a 14 de abril), um número muito superior às 14 bandas da primeira edição, 13 delas locais. Além delas, havia um terceiro palco para bandas iniciantes no meio da Esplanada da Cultura. A música era o mote e a razão de ser do festival, como sempre havia sido.
Apesar do nome, o festival nunca foi um reduto exclusivo do som pesado. É bem verdade que o Goiânia Noise pode colocar nomes do metal extremo em posições de destaque na grade de shows, como aconteceu com Krisiun e Nervosa neste ano. Mas os organizadores jamais viram o festival como uma dieta restritiva de riffs e guitarras altas: edições anteriores já contaram com nomes como Hermeto Pascoal, Odair José, Marcelo Camelo, Frank Jorge, Gerson King Combo, Black Alien, Pato Fu e muitos outros.
Ainda assim, Léo Bigode, Leonardo Razuk e Toshi Kimura – os três nomes a frente do Noise, atualmente – veem o festival como um projeto em constante evolução. O Scream & Yell aproveitou a presença na mais recente edição do evento para fazer uma breve recapitulação histórica e, principalmente, entender o que um festival que traz diversidade musical representa nesse cenário de bolhas estéticas e microidentitárias.
Com tanto tempo de estrada, é razoável supor que vocês tomaram vários tombos…
Léo Bigode: Ô! (risos)
O que sustenta a vontade de continuar com esse projeto de longo prazo, apesar dos prejuízos, das eventuais dificuldades de público e outras coisas?
Léo Bigode: É uma coisa de acreditar demais numa paixão. Foge da lógica e do pragmatismo do business mesmo, porque se fosse por isso, teríamos deixado para trás e parado de fazer. Pela paixão, vem essa insistência de querer persistir. A resiliência é o que move a gente. Por mais que tenhamos tomado vários tombos, seguimos em frente. No tempo das vacas magras, aprendemos a respirar para tentar nos reerguermos e nos reinventarmos.
Em 30 anos, a cena mudou muito. A movimentação das bandas, a relação do público com elas e com os eventos: tudo é diferente do que era há 30, 20 ou 10 anos. Como vocês têm tentado se adaptar a isso, mas ao mesmo tempo preservar a identidade do festival, que é de funcionar como vitrine de coisa nova, de não ser só uma oportunidade de negócios para bandas consagradas?
Léo Bigode: Isso é muito peculiar da cena de Goiânia, o circuito de público que temos aqui sempre foi muito receptivo. Isso desde o começo dos anos 1990. Quando as pessoas de fora vinham para cá, a galera [local] sempre pirou. A galera curte, para pra ver show, consome os discos e o material promocional das bandas. Isso é uma coisa do goiano, ele sabe ser receptivo, caloroso, e a gente só se incorporou nisso. Pra gente, o lance de colocar banda nova e abrir espaços para elas é meio que um dos itens conceituais básicos do festival. É e sempre foi a nossa intenção.
Vocês dois são indissociáveis à Monstro Discos. Embora o selo de fato seja um dos realizadores do festival, ele não é uma vitrine de vocês. Imagino que não deva ser fácil equilibrar isso dentro do próprio elenco da Monstro.
Leonardo Razuk: Isso é difícil, cara. O cast da Monstro está muito focado em Goiânia ainda, então as relações são complicadas. Esse ano mesmo a gente teve problemas com bandas que acham que vão tocar, e o que a gente faz nesses casos é deixar muito claro para eles que o selo é uma coisa e o festival é outra. O festival tem que primar por quem está produzindo, não basta ser do selo. Por isso, a gente dá muito esse toque nas bandas: ó, cara, faz coisa nova aí, a banda está parada, corre atrás, grava alguma coisa, arruma um show. Se precisar, a gente ajuda a dar um rolê em outros Estados, pra banda se manter ativa e garantir seu espaço aqui no festival. Se fosse só estar no selo para tocar no festival, a gente faria um festival da Monstro, e nem teria espaço para outros artistas.
Léo Bigode: E tem um negócio curioso, cara: é doido demais que, nesses 30 anos, o Noise catalisa a cena! Sempre comento isso: vai chegando perto da data, as bandas estão lançando coisas.
Leonardo Razuk: Exato. Se o festival é em novembro, em agosto o pessoal já está preparando alguma coisa.
Léo Bigode: Se a gente analisar hoje a linha do tempo, dá para observar que, nos períodos mais pertos de chegar o festival, os estúdios têm mais movimento, tem ilustrador, fotógrafo, pessoal gráfico, todo mundo trabalhando para sair material. Sem saber e sem querer, a gente fez funcionar a cena local, e isso é muito louco! A gente sempre briga na hora de curar por causa disso, porque um monte de gente quer lançar disco na data do Noise (risos).
E vocês veem renovação de cena na produção? Tem um novo Léo Bigode, um novo Léo Razuk, para vocês fazerem uma passagem de bastão?
Léo Bigode: Pô, essa pergunta é difícil!
Leonardo Razuk: Acho que é o final mesmo (os dois riem). Se pegar aqui em Goiânia, quem está produzindo coisa é o João Lucas, o pessoal do Vaca Amarela, mas também é gente que já tem estrada, tem uma longa história. Eu não sei se tem outras pessoas produzindo.
Léo Bigode. Acho que new Generation mesmo, alguém em carreira solo [de produção] aqui em Goiânia não tem. Em outras praças eu tenho observado isso, mas aqui não, pelo menos não no nosso segmento. Em outros segmentos culturais, sim: tem galera nova nas artes visuais, no grafite, mas na música em si, não. A galera do Shiva, que é um bar mais indie daqui, tem feito algumas coisas por lá, mas é bar, não festival.
Leonardo Razuk: Mas olha, lembrei agora (ri), pelo menos em termos de bandas, aqui é tipo um estádio: o cara toca aqui (aponta para o palco dos iniciantes) num ano, toca ali (aponta para o palco da Esplanada) no outro) no outro, e depois está tocando lá (aponta para o Palácio da Música).
Tem uma coisa que se vê hoje nos festivais é que muitos deles giram mais em torno da marca do patrocinador, das ativações de marketing, do que da música em si. Outros tantos giram em torno de uma pauta identitária, e a curadoria se orienta a partir daí, e não da música. Seja pelo marketing, seja pela causa, a curadoria acontece a partir deles, e a música muitas vezes é secundária. No Noise, não. O festival tem seus patrocinadores, e as causas aparecem, mas a música define a curadoria, é o propósito e a razão de ser do festival.
Léo Bigode: Esse é um dos desafios. Nos festivais maiores, o que a gente vê é a tal da “experiência”, a música definitivamente não está em primeiro plano. A gente luta contra isso, luta para vencer isso todo ano. É uma das coisas fundamentais para a gente.
Depois de anos ouvindo o papo de que “o rock morreu”, agora o discurso mudou: muita gente do meio fala que o rock virou um nicho, tal qual o jazz era antes dele. Só que o rock sempre se propôs ser pop, falar com mais gente. Diante disso, vocês acham que ainda faz sentido pensar em eventos de rock com uma aspiração mais mainstream, ou isso é bobagem?
Leonardo Razuk: Acho que é cada vez mais nicho, sim, mas ao mesmo tempo, acho que o rock está se moldando para outras coisas. Olha a Letrux, por exemplo: o show dela é super rock’n’roll, mesmo a música não sendo tão rock assim. No caso do Noise, acredito que ele vai ficar sempre desse tamanho aqui. Teve uma época que a gente chegou a pensar que ele poderia ser maior, e a gente não se deu muito bem. Acho que sempre vai ser um festival para 4 mil, 5 mil pessoas.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.